sábado, 5 de novembro de 2016

PROFESSORA MARTA BEZERRA DE MEDEIROS: UMA VIDA, UMA PROFISSÃO (1931 – 1954Maria Elizete Guimarães Carvalho   mecarvalho23@yahoo.com.br Luciana Martins Teixeira dos Santos (UFPB)


















Resumo As pesquisas (auto)biográficas em História da Educação têm contribuído para a reflexibilidade de trajetórias educacionais desconhecidas, de subjetividades inusitadas, colocando‐se como desafio no que se refere as suas potencialidades, seus limites, suas perspectivas para os estudos historiográficos. É nesse sentido que deve ser compreendido o atual trabalho, que tem o propósito de analisar momentos da história de vida professoral de Marta Bezerra de Medeiros, entre os anos de 1931 a 1954, refletindo sobre os papéis ocupados, sobre as práticas culturais desenvolvidas em sua existência, colocando em discussão fatores de transformação e de renovação da prática educativa na primeira metade do século XX. A trajetória de vida da professora coloca‐se como verdadeiro desafio, tendo em vista suas possibilidades para a compreensão da educação do período. A abordagem reconstitutiva apresenta cenários e quadros descontínuos e muitas vezes contraditórios, repletos de significado, que estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e político‐sociais. O estudo investiga tais quadros, sendo indispensável a reconstituição do contexto histórico para a compreensão de um conjunto de práticas educacionais, literárias e políticas. Porque o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório (BOURDIEU, 1996). É a interpretação desse real, em uma definição da vida como anti‐história, e não como percurso linear, que dá origem ao problema: é possível escrever a vida de um indivíduo? A biografia como instrumento de pesquisa histórica confirma essa possibilidade, transformando a vida íntima em testemunho histórico, permitindo a compreensão de uma época e a configuração da superfície social, em que age o indivíduo. Permite também a construção do sujeito integral, em um mundo fragmentado (MORAES, 2010). Tendo nascido no início do século XX, em Lages/RN e exercido o magistério a partir de 1932, Marta Bezerra de Medeiros foi protagonista das lutas pela educação em seu Município, sendo nomeada professora municipal, numa época em que não existiam escolas municipais nessa região. Os retalhos biográficos traduzem os fragmentos de uma vida em constante mudança, marcada pelo contraditório dos seus pensamentos, por incessantes retornos e por uma percepção de si, que revelam uma identidade em construção e um trabalho educacional coerente e contraditório com as práticas de seu tempo. Daí sua história de vida não seguir um itinerário linear e determinado. A reconstrução de sua história professoral é realizada a partir da análise da produção manuscrita cotidiana, como correspondências, cadernos, livros de matrícula, planos de aula, e da leitura desses documentos nas entrelinhas, em um processo de interação entre a vida privada e o contexto histórico, abrindo‐se espaço também para o trabalho com fontes orais. Palavras‐chave: Pesquisa Biográfica. Contexto Histórico. Trajetória Educacional.      Introdução Os estudos realizados sobre a história de vida de professores têm revelado trajetórias educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o conhecimento de vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas que esclarecem situações contemporâneas, evidenciando

os desafios, as vantagens e as limitações da utilização desse recurso historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas educacionais que marcaram determinado período histórico. São investigações que estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e político‐sociais, orientando a interpretação de problemas educacionais contemporâneos em sua articulação com o passado. A história de vida da Professora Marta Bezerra de Medeiros apresenta essas características. Elucida o passado numa perspectiva histórica, colocando em evidência fatores de transformação e de renovação sociais que marcaram sua trajetória e a ação dessesfatores em sua prática educativa. O interesse por essa abordagem histórica vem sendo construído faz algum tempo, originando‐se na interpretação de que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo a história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa articulação traria explicaçõessobre acontecimentos pessoais, profissionais e político‐sociais. Nesse sentido, escrever história de vida é biografar o percebido da vida, colocando “[...] o outro como protagonista de um enredo (biografar)” (PASSEGI, 2010).
  Para Delory‐Momberger (2008, p. 37): O espaço‐tempo da representação biográfica toma do discurso narrativo seus princípios de organização e de coesão: secessão de causalidade narrativa, sintaxe das ações e das funções, dinâmica transformadora entre sequência de abertura e fechamento, orientação e objetivo. Em seus diversos níveis de operacionalidade, a narrativa apresenta‐se como a linguagem do fato biográfico primordial [...], como o operador da tessitura da intriga, mediante o qual fazemos de nossa vida uma história. Outro aspecto motivador para a escritura sobre histórias de vida é a consciência da necessidade de explorar novas perspectivas do passado, proporcionadas por fontes documentais, como correspondências, diários, poemas, o que aponta para o aprofundamento do paradigma da história vista de baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas freqüentemente ignoradas ou que aparentemente não ocuparam um lugar especial na história. A história das pessoas comuns é um campo especial de estudo que possibilita “uma síntese mais rica da compreensão histórica, de


Entre Retalhos de uma Vida e de uma Profissão A leitura crítico‐interpretativa do material memorialístico que marca o percurso de vida da Professora Marta Bezerra de Medeiros e que está sendo recolhido ao longo da pesquisa que está sendo desenvolvida1 , aponta para outrasformas ver, de ver de novo, a história de vida. Na garimpagem desses documentos, feita de forma aleatória, sem o propósito de estabelecer ou ordenar temporalidades, encontra‐se um telegrama, datado de 07 de agosto de 1948, endereçado à Professora Marta, proveniente da Presidência da República, no contexto dos anos que marcaram a Redemocratização do país, no século XX. Tal comunicação informa que o Presidente recebeu a carta da Professora, submetendo‐a à apreciação do Ministro da Educação. Tal fato será esclarecido pela Nota sob o título “Gesto Louvável”, na revista Pedagogium, “Órgão Oficial da Associação dos Professores”, em Natal/RN, dos meses de novembro‐dezembro1948, que assim refere: Marta Bezerra da Cunha, professora provisória, classe A, com exercício, atualmente, numa escola isolada da cidade de Itaretama, é bem um exemplo a ser apontado do elemento dedicado ao seu mister. Trabalhando, a princípio, na vila de Pedra Preta, do mesmo município      de Itaretama, a contento de todos, num esforço profícuo, não mediu sacrifícios, apesar de os bons fados não a favorecerem. Marta sofre de ataxia locomotora. Conquanto, privada de locomover‐se, por essa longa e pertinaz enfermidade, apreciável tem sido a sua cooperação à nobre causa do ensino. Movida pela angústia do seu estado físico e confiante na generosidade dos grandes corações, teve a feliz idéia de se dirigir ao Sr. Presidente da República, relatando, de modo circunstanciado, numa carta simples, mas cheia de sugestiva sinceridade, a situação aflitiva que a atormentava. E não se fez esperar o gesto magnânimo do primeiro Magistrado da Nação, concretizado, na oferta patriótica e humanitária, que acaba de fazer à jovem professora da cidade de Itaretama, de uma Cadeira de Rodas, que lhe viesse suavizar as agruras da contingência, que lhe impôs o Destino. Como se vê, nem tudo está perdido, nesta terra de grandes possibilidades, neste país do futuro, como se exprimiu Zweig... (GESTO, 1948, p. 41).                                                             1 O Projeto de Pesquisa Professora Marta Bezerra de Medeiros: a Profissão Docente na Primeira Metade do Século XX (1915‐1954), vinculado ao Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UFPB, está sendo desenvolvido desde agosto de 2011, com previsão para conclusão em julho de 2012.
Esse fato revela uma prática social comum em quase todo século XX: a comunicação epistolar, e outro ponto marcante, todos, inclusive o primeiro Magistrado da Nação estava incluso nessa grande rede de relações. O texto é revelador. Fornece dados para a composição da identidade da protagonista. Quem é Marta Bezerra da Cunha? Nesse momento, é uma professora primária, caracterizada pelo Departamento de Educação do Estado do Rio Grande do Norte como provisória, classe A, em exercício em uma escola isolada de um município interiorano. Ora esses dados revelam aspectos educacionais de uma época em que existia a categoria provisória para definir os agentes educacionais. Mas que categoria é essa? É a categoria a que hoje corresponde substituta e que naquela época já existia, como faz entenderseu Título de Nomeação: Artigo nº 15, item V, do Decreto‐Lei nº 123, de 28 de      outubro de 1941, combinando com o artigo 1º, item I do decreto‐Lei nº 279, de 3 de março de 1944, Marta Bezerra da Cunha para exercer, como professora substituta, o cargo da classe F, da Carreira de Professor Primário – tabala 3. P. P., do quadro único do Estado, da Escola Isolada da Vila de Pedra Preta durante o impedimento da respectiva titular, Maria Hadar Nelson que está freqüentando o Curso de Aperfeiçoamento do Departamento de Educação (TÍTULO, 1944).    Esta é a primeira experiência da professora Marta como docente pertencente ao quadro Estadual de Ensino. No entanto, ela já era Professora Pública Municipal desde 1932, quando conquistou esse espaço a partir das relações políticas que sua família mantinha com os poderosos de seu tempo. Apesar de sua extrema juventude, com apenas 16 anos de idade, e sem o diploma da Escola Normal, compreende que pode ser nomeada para o cargo de professora municipal, apesar de nesse período não existir ainda, no município, essa categoria.Valeu‐se inicialmente da prática social bastante utilizada na época pelas pessoas alfabetizadas. Escreveu ao Prefeito, que lhe respondeu: Gabinete do Prefeito, Lajes 30 de novembro de 1931.     Senhorita Martha,           Saúde.Venho fazer‐lhe ciente que no próximo anno a instrução será ao cargo do Estado e não do prefeito, como está sendo, portanto não é possível o que lhe prometi, no entanto farei por si o que puder... Disponha sempre do amigo. Ubaldino Batista   Ora, nesse momento, não sendo obrigatória a prática do concurso público para professor, as nomeações para esse cargo (como para tantos outros) se faziam por indicação política, a partir de promessas de campanhas. Os cargos estavam dispostos em um balcão de apostas, ganharia aqueles que compreendessem melhor o jogo. Martha compreendeu. Sua família tinha ligações e compromissos com o poder político local. Era filha de fazendeiro e aliado político do Sr. Francisco Leandro da Costa chefe político local. Sua mãe adotiva era amiga da primeira prefeita eleita de Lajes e do Brasil, Dona Alzira Teixeira Soriano. Em parceria conseguiram a nomeação junto ao chefe político regional. Estavam explícitas as razões que justificariam sua nomeação, já que naquele contexto não eram o saber ou título que resolveriam a questão. Assim, Martha conquistou sua nomeação para o cargo de professora da Prefeitura Municipal de Lajes, lotada na primeira escola denominada “Nova Olinda” (RIBEIRO, 1997). Considere‐se essa rede de trocas de favores entre a política local e regional do Brasil do início dos anos 1930. Apesar de uma nova configuração social estar em formação, continuava figurando, mesmo com seu poder reduzido, a velha aristocracia rural. A educação estava a mercê desses arranjos políticos. Ribeiro (1997, p. 33) explica o interesse político refletido na nomeação: A finalidade da nomeação da jovem professora era preparar os eleitores, ou melhor, fabricá‐los para as próximas eleições municipais, pois os chefes políticos contavam com esta clientela da zona rural, assim Marta assume o cargo e leciona de 1932 até 1945.    Ora a Revolução de 1930, entre outras questões, combatia as oligarquias, o voto de cabresto, os currais eleitorais. Mas essas práticas vão permanecer por muito tempo em um país rural, formado em sua maioria de pessoas não escolarizadas. A nomeação da primeira professora IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, Stinha o propósito de quantificar e fortalecer esses currais. Não era à‐toa que o município criava o cargo. Porém, apesar da paraplegia que restringiu seus passos a uma cadeira de rodas por mais de cinqüenta e seis anos, suasidéias e ações superam seus limites. Quando em 1944 é nomeada para a Escola Isolada da Vila de Pedra Preta, além das turmas de primeira, segunda e terceira série que funcionavam na mesma sala, cria o curso para adultos, preocupando‐se não só com a alfabetização, mas também com a preparação para o exercício da cidadania, compreendida como igualdade política, econômica, jurídica, social e cultural, como processo de construção social que implica na conquista do direito ao atendimento das necessidades básicas do ser humano. Logo, não mais fabricava eleitores. A redemocratização do país trouxe um novo significado às relações sociais e à prática educativa. O próprio agente educativo podia (?) criar o curso e monitorá‐lo. Na verdade, o Regimento Interno das Escolas Primárias do Estado do Rio Grande do Norte, em vigor a partir de 1940, não faz qualquer referência ao curso de adultos. Por outro lado, a documentação é oficial, com timbre do Departamento de Educação do Estado, o que demonstra conhecimento do fato pelas autoridades competentes. Sabe‐se que é a partir do final dos anos 1940 que surgem algumas propostas para a escolarização de adultos, o que vem a disseminar campanhas de alfabetização pelo território nacional. Assim, a proposta da Professora é ousada, o que revela a renovação da sua prática, o caráter de devir de sua identidade professoral, que se caracteriza como processo em que ela própria é autora. Com cerca de 15 anos de experiência nessa formação, a Professora compreendia as necessidades das pessoas adultas de sua região. O Resumo de Matrícula e Freqüência, do Departamento de Educação do Estado, do mês de agosto de 1946, da Escola Noturna de Pedra Preta, Município de Itaretama, apresenta um total de 20 adultos inscritos com uma freqüência de 80%. Esse fato demonstra uma procura real por alfabetização, tendo em vista outros cadernos de matrícula do período que demonstram a situação, não sendo então o desinteresse pela escolarização que atesta a abstenção da escola, mas as condições específicas de cada família, somadas às deficiências da rede escolar. Fica claro, nesse momento o entrelaçamento da vida da personagem com seu momento histórico.
Existia um grande déficit educacional na área rural. As mudanças ocorridas com a revolução burguesa no Brasil não atingiram a população como um todo. Desse mesmo modo, as mudanças educacionais, insuficientes e inadequadas, privilegiavam as camadas sociais dominantes, expandindo‐se para elas as oportunidades educativas. Com o crescimento da industrialização, a expansão do setor moderno, a emergência de novas camadas sociais, ocorre também a expansão da antiga educação, mas nas condições referidas. Essas mudanças, no entanto, contribuem para o aumento das necessidades de alfabetização em todos os níveis. Retome‐se o primeiro retalho de vida coletado, ou seja, a Nota, publicada pela revista Pedagogium, sobre a Professora Marta. Percebe‐se bem o estilo patriótico, louvatório, sentimental da época. Marta é apontada como um exemplo do elemento dedicado ao seu mister, exercendo sua função a contento de todos. Ora, e se assim não fosse? O que significa essa expressão em seu contexto histórico? Na verdade, esses primeiros anos foram de aprendizagem para a jovem Professora. E realmente desenvolvia a contento, ou em outras palavras, satisfazia os interesses políticos que estavam nas entrelinhas de sua nomeação. Ou mesmo, o a contento pode ser compreendido no âmbito das idéias que permeavam a função social do professor naquele momento. Considere‐se a compreensão de Melo (1948, p. 43) sobre o assunto: Instruir e educar a puerícia, plasmar na juventude o caráter de cada povo, eis o destino do homem, pois, só dessa instrução bem orientada depende o futuro do nosso amado Brasil.                            [...] Como a tarefa da remodelação mental dos indivíduos pertence à educação, que deve ser ao mesmo tempo, física, intelectual, estética, moral, econômica, cívica e política, é no problema da educação que se encontram todos os demais problemas sociais, pois que a instrução e a moral são as grandes alavancas que sustentarão os interesses materiais de um povo.                             [...] Pelo que fica exposto, ressaltam‐nos [...] o papel importante desempenhado pelo professor no engrandecimento da sociedade, e, conseqüentemente, da civilização, visto que é ao professor, ou melhor, ao educador, a quem compete ministrar os imprescindíveis princípios, isto é, preparar o campo social pela inoculação na mente do educando da maior soma de conhecimentos úteis, portanto, a quem está confiada a obra gradual e transformadora das futuras gerações

Porém, ao mesmo tempo em que seu papel social pode ser compreendido como conservador, ela quebra paradigmas no âmbito da prática professoral. Marta ensina e aprende com seu aluno. Escuta cada um. Troca conhecimentos. Rompe limites. Cria possibilidades a partir da sua impossibilidade física. A cadeira de rodas suaviza‐lhe as agruras da contingência, que lhe impôs o Destino. Acreditava em Destino? Suas ações e atitudes revelam que não. Marta produz sua própria existência. Não se deixa conduzir. Conduz. Sua identidade é imprevisível. Não se deixa envolver pela previsibilidade, pela constância da identidade social. É tão contingente que é nomeada oficialmente Marta Bezerra da Cunha, ao nascer em 1915, mas depois em razão da própria contingência do real que a deixou órfã de mãe, passa a se autodenominar Marta Bandeira Cunha em razão da família que a adota, e depois com o casamento, oficialmente, Marta Bezerra de Medeiros. A interpretação desse aspecto é fundamental para a compreensão da identidade da Professora Marta e da sua história de vida. Nascida nos primeiro anos do século XX (terrível século XX, como afirmaria Hobsbawm), em que movimentos e correntes de idéias envolviam as camadas sociais médias urbanas, intelectuais e também trabalhadores, em Lajes/RN, chegam os ecos dessa revolução. Anita Soriano é a primeira mulher eleita no Brasil e na América Latina para o executivo municipal, mesmo antes de, no Brasil, oficialmente a mulher conquistar seu direito ao sufrágio, o que ocorreu em 1932. Sabe‐se que Marta teve oportunidade de conviver com ela, devido à proximidade de suasfamílias. A convivência foi‐lhe salutar. Órfã de mãe, doada pelo pai a uma tia, compreende a fugacidade, a contingência da vida. Muda o nome. Ora, o nome próprio é um ponto fixo em um mundo em movimento, sendo o rito batismal a forma de determinar uma identidade. Por essa forma inteiramente singular de nominação que é o nome próprio, institui‐se uma identidade social constante e durável, que garante a identidade do indivíduo biológico em todos os campos possíveis onde ele intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias de vida possíveis.   [...] Designador rígido, o nome próprio é a forma por excelência da imposição arbitrária que operam os ritos de instituição: a nominação e a classificação introduzem divisões nítidas, absolutas, indiferentes às particularidades
circunstanciais e aos acidentes individuais, no fluxo das realidades biológicas e sociais (BOURDIEU, 1996, p. 186‐187). As palavras de Bourdieu são elucidativas. O nome próprio é uma forma de imposição arbitrária indiferente às particularidades circunstanciais e aos acidentes individuais. Ora, Marta modificou seu nome em função de particularidades circunstanciais e incidentes individuais. Daí a interpretação da sua história de vida como anti‐história, marcada por uma permanência além da pluralidade dos mundos da identidade socialmente determinada pelo nome próprio. A revelação de um sujeito múltiplo. Existe coerência em seus atos? Marta é coerente na incoerência. Cedo aprendeu a estabelecer coerências. Ela  reinventa‐ se e recria a prática pedagógica de seu tempo. É paraplégica? Isto não é limitação para seus propósitos. Conquista a confiança de seus alunos. Faz‐se bela para vencer o estigma da deficiência física. Aboliu de sua prática os castigos. Quebrou o a separação rígida entre professor e aluno. Essa postura diferente das outras professoras de sua época fazia com que os alunos desejassem estudar em sua escola. F

Observe‐se como Ribeiro (1997, p. 18) caracteriza a Professora: Os alunos encontravam‐na sentada em sua cadeira de rodas sorridente, com os lábios pintados de batom vermelho, com os cabelos devidamente preparados com fitas, rosas, tranças, os olhos delineados com lápis escuro e constantemente perfumada. Fazia questão de vestir‐se com dignidade e de usar as melhores jóias. Neste caso, o aluno sabia a priori que ia estudar com uma professora     diferente porque era aleijada, e encontrava uma professora bonita, alegre, carinhosa, sorridente, cheia de pulsões de vida, cheia de desejos de vida. Desfazia‐se assim no cogito dos alunos a visão diferente imposta pela deficiência, para instalar‐se a visão do diferente imposta pela capacidade, vocação, desejo de vida.    Porém, apesar de todo desejo que a impulsionava para a vida, Marta, na contradição que marca sua história, pensava na morte. A morte de sua mãe. Sob essa inspiração compõe o poema Orfã, em 1939, que revela sua fragilidade perante a contingência da vida. Morreu mamãe! Deixou‐me sobre o berço                                       Sem gozar um carinho maternal                                       Morreste oh mãe! E nem sequer conheço                                       Teu semblante talvez lindo ideal!! Por não gozar teus carinhos Mãe querida,                                       Sinto atroz dor, meu coração ferir.                                       E nesta solidão de minha vida                                       Até meus lábios recusam de sorrir O rigor desta sorte eu carpirei                                       Sentindo sua falta eu morrerei                                       Mas conservo seu nome na lembrança                                       Quando eu subir ao céu que te encontrar                                       Hei de beijar‐te! Oh Mãe e te abraçar                                       Pois é esta minha única esperança ...                A perda da mãe aos seis meses de vida deixou em Marta marcas profundas. Pois, não só perdeu a mãe, mas a família, a identificação primeira. A dor, o luto que jorram do poema testemunham a importância da figura materna como modelo nos primeiros anos de vida de uma criança. Ela não tinha tal representação. Na impossibilidade de encontrar a mãe, transfere para outro plano o desejo de conhecê‐la e beijá‐la. É a continuidade presente na sua vida privada em IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL” Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5 317 contraste com a renovação em sua vida profissional. São os quadros contraditórios de sua história de vida que se unem pelos fios invisíveis do não‐dito, mas que se harmonizam na significação unificadora dos contextos. Considerações Finais A análise crítica das histórias de vida revela que elas não devem ser compreendidas como série única e suficiente de acontecimentos sucessivos vinculadas a um sujeito, cuja única constância é seu nome próprio. Ora, o nome próprio é o produto de ritos, e o agente da história é ele próprio um devir, um ser em constante transformação, nunca pronto e acabado, mas um sujeito em construção. A história de vida da Professora Marta Bezerra de Medeiros afirma essa percepção. É possível escrever a vida de um indivíduo, não como trajetória em que fatos e acontecimentos privados se sucedem, mas como reflexão, buscando na história do mundo a forma e a explicação para a experiência do indivíduo. É dessa história que Marta participa e que vai marcar sua vida. Um conjunto de circunstâncias encontradas e transmitidas pelo passado. Marta, porém, é agente desse mundo, sujeito incompleto, em constante devir. Sua ação educativa renova na continuidade, desconstrói paradigmas, rompe com seu tempo, a primeira metade do século XX. As possibilidades de compreensão da prática educativa elucidadas pelo estudo biográfico da Professora Marta evidenciam as aproximações entre a escrita de si e a historiografia da educação, em um processo de ampliação, diversificação e atualização dos fatos educacionais (des)conhecidos, que interagem com a historicidade de si e com o contexto de formação.      Referências BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral (Orgs.). Rio de Janeiro; Fundação Getúlio Vargas, 1996. BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1995. IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL” Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5 318 DELORY‐MOMBERGER. 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