domingo, 24 de julho de 2016

Homenagem à Prof. Marta Bezerra de Medeiros, educadora das cidades de Lajes e Pedra Preta





















Documentos e fotografias da antiga Escola Isolada de Lajes e da Escola Isolada de Pedra Preta onde a Prof. Marta Bezerra de Medeiros exerceu o magistério público estadual por trinta anos e da Escola Isolada de Nova Olinda, onde a professora exerceu o magistério primário durante quinze anos. Marta Bezerra de Medeiros nascida Marta Bezerra da Cunha era filha de Manoel Bezerra da Cunha e de Ana Hermínia de Paiva Cunha, nasceu no dia 19 de Fevereiro de 1915, na cidade de Jardim de Angicos, onde sua família era proprietária da Fazenda Milham (Milham dos Cunhas). Posteriormente, seu pai Manoel Bezerra da Cunha comprou outra propriedade na cidade de Lajes, denominada fazendo Nova Olinda, situada no Distrito de Picos Preto. A Prof. Marta concluiu o curso complementar misto na Escola Estadual Pedro II, em Lajes (Grupo Escolar Pedro II) na primeira turma de 1931, sendo nomeada posteriormente, Professora do ensino primário da rede municipal no governo do Prefeito Ubaldino Batista.
 Marta Bezerra de Medeiros, Luiza Bandeira do Nascimento e Eriscina Bandeira Fernandes sendo Luiza e Eriscina filhas legítimas de Maria Rosa Bandeira de Melo e Manoel Lourenço, sendo Marta filha adotiva deste casal. As três seguiram a carreira do magistério público estadual e trabalharam pela educação em Lajes, Caiçara e Pedra Preta.

Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 280 PROFESSORA MARTA BEZERRA DE MEDEIROS: A PROFISSÃO DOCENTE NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX (RIO GRANDE DO NORTE, 1915-1954) Maria Elizete Guimarães Carvalho Universidade Federal da Paraíba - UFPB RESUMO Este artigo tem por propósito refletir sobre a história de vida da Professora Marta Bezerra de Medeiros, a partir dos resultados do Projeto de Iniciação Científica Professora Marta Bezerra de Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954), desenvolvido no período de agosto/2011 a julho/2012, na Universidade Federal da Paraíba. A história de vida professoral apresenta conhecimentos sobre o exercício da profissão docente na primeira metade do século XX, esclarecendo questões que marcam a crise professoral atualmente, possibilitando a compreensão das relações educacionais, sociais e políticas desenvolvidas nesse período histórico. Metodologicamente, trabalhou-se com os procedimentos da história oral articulados ao diálogo com fontes escritas e iconográficas, inserindo, nesse contexto investigativo, a pesquisa biográfica, alicerçando o trabalho com os estudos de Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999), entre outros. A configuração do ser professora não ocorre de forma isolada de suas condições históricas. Nesse sentido, o trabalho da Professora Marta foi modelado pelas condições históricas de seu tempo, mas por outro lado ressignificou a prática professoral da sociedade ainda patriarcal e conservadora das primeiras décadas da República. Palavras-chave: História de vida professoral. Profissão docente. Contexto histórico republicano. Prática professoral. TEACHER MARTA BEZERRA DE MEDEIROS: THE TEACHING PROFESSION IN THE XX CENTURY FIRST HALF (RIO GRANDE DO NORTE, 1915 - 1954) ABSTRACT This article purposes to reflect about de life history of Teacher Marta Bezerra de Medeiros, according de results of the Scientific Initiation Project named Professora Marta Bezerra de Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954), developed at August/2011 to July/2012, in Universidade Federal da Paraíba. The teach life history presents information about the exercise of the teach profession in the XX century first half, explaining questions that mark the teach crisis, actually, allowing the comprehension of the educational, social and politic relations developed in that historic period. Methodologically, worked with the oral history proceedings articulated to the dialog with written and iconographic roots, inserting, in this investigative context, the bibliographic research basing the work in Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999) and others authors studies. The configuration of being teacher does not happen isolated of the historic conditions. In this way, the Teacher Marta’s work was done by the historic conditions of her time, but took a new mean to the teacher practice of the patriarchal and conservative society of the Republic first decades. Keywords: Teach life history, Teacher profession, Historic context of Republic, Teach practice Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 281 Introdução Os estudos sobre as histórias de vida professorais têm revelado que é possível conhecer a prática e a história da docência, o contexto social e histórico em que o percurso de vida se desenvolveu, a partir de abordagens biográficas e / ou (auto) biográficas, que colocam em conexão a vida pessoal e profissional, a vida e a história, fazendo “reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face ao instituído” (NÓVOA, 1995a, p. 18). Nessa perspectiva, situam-se propostas investigativas de histórias de vida professorais, como tentativas de compreender o exercício da docência, as questões que permearam/permeiam a profissão, os papéis atribuídos ao professor, a formação de sua identidade, o espaço ocupado pelo docente ao longo da história, como também para compreender a crise que tem caracterizado a profissão professor nos dias atuais. De acordo com Nóvoa (1999), a desvalorização da profissão docente é um fato registrado faz muito tempo. A docência vem sendo constantemente descaracterizada tanto pelos baixos salários, como pelo excesso de papéis atribuídos ao professor, gerando uma situação de mal-estar na profissão, resultando em desmotivação pessoal, abandono, insatisfação, indisposição, desinvestimento na profissão e ausência de reflexão crítica (NOVOA, 1999). Em face de tais evidências, que revelam a depreciação e autodepreciação da docência, constitui-se preocupação o exercício da profissão professor no contexto atual, preocupação relacionada à prática cotidiana, a depoimentos escutados em sala de aula, a testemunhos gravados em investigações científicas, como também, a estudos realizados sobre a profissão (NÓVOA, 1999), (VEIGA; ARAÚJO; KAPUZINIAK, 2005), a vida (NÓVOA, 1995b) e a prática da docência (TARDIF; LESSARD, 2005). Nesse cenário teórico e prático, quase todas as evidências apontam para a depreciação da profissão ou para propostas de reconstrução, o que revela a crise porque passa a profissão docente, apesar das sociedades atuais reconhecerem a necessidade de investimento na educação. Nunes (2007, p. 22) explica a crise que marca a profissão docente atualmente: [...] A referida crise ganha destaque em decorrência de questionamentos que apontam as funções disciplinadora, controladora e ideológica, que regulam tal profissão ao visar garantir o profissionalismo técnicoinstrumental no sentido de atender à nova ordem social pautada por um projeto neoliberal, em detrimento de um profissionalismo assentado em uma conduta ético-reflexiva. Tal configuração do profissionalismo docente cria um desconforto na profissão, revelado em forma de crise que se projeta nos âmbitos profissional e social. Ora, a profissão docente não se tem constituído um atrativo para os jovens que buscam os cursos superiores. Esse fato, além das razões apontadas, tem uma explicação: existe um grande paradoxo caracterizando a profissão professoral atualmente, pois, se por um lado glorifica-se a sociedade do conhecimento, por outro, o tratamento dispensado aos professores revela o desprestígio da profissão. Na explicação de tal ambiguidade, Nóvoa (2010, p. 12) aponta o excesso de valorização da escola: “tudo se resolve dentro das escolas” e a diminuição da profissão professor: “qualquer coisa serve para ser professor”. Outro fator que também precisa ser considerado nessa reflexão diz respeito à demanda pelos cursos de formação de professores. Depoimentos revelam que a procura é justificada pela maior facilidade na entrada e também pela crença de que se trata de cursos fáceis1 . Grande parte da sociedade continua valorizando os cursos que formam engenheiros, Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 282 advogados, médicos, entre outros. Esses fatos geram insegurança e descrença na profissão docente. Incomodada com essa problemática, tentando compreendê-la e explicá-la, buscou-se na história da docência, a partir de trajetórias de vida professorais, explicações para o fenômeno dessa desvalorização, cruzando momentos de vida pessoal com momentos de vida profissional, acreditando que é possível compreender a maneira de ser na maneira de ensinar e a maneira de ensinar no modo de ser, o que revela ser “impossível separar o eu profissional do eu pessoal” (NÓVOA, 1995a, p. 17). Nesse sentido, o conhecimento da profissão docente ocorreria a partir da compreensão de vivências pessoais e profissionais, da reflexão sobre trajetórias professorais em conexão com o contexto histórico. Em face dessas considerações, objetiva-se nesse artigo refletir sobre a história de vida da Professora Marta Bezerra de Madeiros2 , em seus aspectos pessoal e profissional, tomando como período de análise a primeira metade do século XX, não como barreira ou limite à investigação histórica, mas como parâmetro definidor do recorte temporal, tendo em vista que o estudo de uma história de vida deve considerar a articulação entre presente, passado e futuro, entre o tempo e o espaço vivido. Histórias de vida professoral A opção pela história de vida professoral para compreensão da profissão docente em determinado momento histórico orienta para a investigação interna e externa da profissão, para a configuração da ação pedagógica do professor, sua postura no exercício professoral, como também as relações profissionais, sociais e políticas desenvolvidas ao longo de sua vida. Da compreensão dessas relações e das trajetórias percorridas resultaram explicações sobre o significado da docência e da crise que perpassa a profissão atualmente. Nesse sentido, o estudo do passado da profissão docente constitui-se uma alternativa de explicação para questões manifestas no presente, demonstrando ser imprescindível o intercâmbio de experiências, a interpretação de relações, representações, fatos e acontecimentos a partir de fontes documentais e da memória individual e/ou social. Nessa configuração, a biografia como instrumento de pesquisa histórica transforma a vida íntima ou profissional em matéria histórica, permitindo a compreensão de uma época e a configuração da superfície social em que age o indivíduo. As práticas sociais e as representações da docência configuradas na vida pessoal e profissional da Professora Marta Bezerra de Medeiros forneceram subsídios para a compreensão da profissão professor na sociedade brasileira da primeira metade do século XX, contribuindo para o esclarecimento do mal-estar docente nos dias atuais. A investigação de trajetórias de vida professorais significa também investigar a articulação entre presente e passado, considerando que as pessoas não nascem professoras, elas se constituem docentes, por processos de formação e autoformação, imbricados em um tempo e espaço. Nessa compreensão, as questões que envolvem o ser professor atualmente estariam relacionadas com o passado da profissão. [...] pesquisar sobre professores e suas trajetórias é, em qualquer tempo, trabalhar com um contexto muito anterior à prática em si, ao dia a dia, a vida funcional. É levar em conta o período de formação, de ‘formar para a ação’, e o período ainda anterior a este, a história de vida de cada um dos sujeitos, o que os trouxe, em última instância, a preparação para o exercício do magistério (ESQUISANI; WERLE, 2010, p. 106). Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 283 Os estudos realizados sobre a história de vida de professores apontam trajetórias educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o conhecimento de vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas, evidenciando as vantagens e as limitações da utilização desse recurso historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas educacionais que marcaram/marcam determinado período histórico. São investigações que estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e políticosociais, orientando a interpretação de problemas educacionais contemporâneos. Essa abordagem histórica revela que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo a história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa articulação traria explicações sobre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais. Por outro lado, o trabalho com histórias de vida abre espaço para a exploração de novas perspectivas do passado, proporcionadas por outras fontes documentais, como correspondências, diários, poemas, colocando em evidência o paradigma da história vista de baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas frequentemente ignoradas ou que aparentemente não ocuparam um lugar especial na história. Um trabalho que pretende investigar a profissão professoral a partir de trajetórias de vida e de recortes biográficos procura desenvolver uma reflexão sobre a vida do professor, seus anseios, suas lutas pela sobrevivência e pelo desempenho da profissão docente. As histórias de vida professorais revelam questões que permeiam a profissão em determinado momento e contexto histórico, possibilitando a compreensão das dificuldades, condições, jeito de ser e agir docentes. Na sociedade atual, as modificações ocorridas influenciam a vida pessoal e profissional dos professores, criando-se desafios ao exercício da profissão, pela própria indefinição dos papéis que são chamados a desempenhar. Nóvoa (2010, p.12) aponta alguns fatores que fragilizam a profissão professor nesse contexto, como é o caso do “excesso das missões da escola, o excesso de pedidos que a sociedade nos faz e, ao mesmo tempo, uma cada vez maior fragilidade do estatuto docente”; a “retórica do professor reflexivo e, ao mesmo tempo, a inexistência de condições de trabalho concretas [...] e desenvolvimento profissional [...]” (p.13). “Os professores têm perdido prestígio, a profissão docente é mais frágil do que era há alguns anos”. As modificações sociais implicam novas configurações para o profissional professor, que se sente perdido frente ao novo cenário educacional, acarretando o desgaste de sua imagem. O “professor encontra-se numa encruzilhada: mudar, melhorar, produzir uma nova referência de profissionalidade” (FARIAS, 2007, p. 75). A reflexão sobre o desgaste operado na profissão docente aponta para o estudo de histórias de vida professorais, como tentativa de compreender a profissão professor, sua história, representações. Porque o indivíduo representa sua história, expressa sua existência em narrativas, na relação consigo mesmo e com a coletividade, em diários, memórias, discursos, correspondências, currículos, autobiografias, figurando acontecimentos, ideias, relações, sentimentos, em um processo de biografização que vai além do processo “sóciohistoricamente inscrito, formal e estruturalmente determinado”, realizando-se também como “processo de socialização e construção da realidade social” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 26). As histórias de vida no campo educacional permitem compreender como os profissionais da educação constroem seus percursos existenciais, sua trajetória de formação e profissional, os saberes sobre a realidade e sobre si mesmos, em uma concepção da biografização como interação entre o indivíduo e a sociedade. Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 284 [...] No pólo educação-formação, ela [a abordagem biográfica] é representada, particularmente, pela corrente das histórias de vida, cujos dispositivos têm o intuito de esclarecer projetos pessoais e profissionais a partir da apropriação de uma ‘história pessoal’ (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 26). Nesse sentido, a história pessoal de uma professora, representada pela biografia, contribui para compreensão da profissão docente em determinado momento histórico, fornecendo pistas para a problemática da profissão atualmente. Enquanto conjunto de representações que o indivíduo constroi da própria vida e de sua história, a biografia tornou-se um componente e um horizonte do campo educativo. A maneira como os indivíduos biografam suas experiências e, em primeiro lugar, a maneira como integram em suas construções biográficas o que fazem e o que são na família, na escola, na sua profissão e na formação continuada são parte integrante do processo de aprendizagem e de formação (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 30). A Professora Marta Bezerra de Medeiros deixou na biografização de sua existência indícios e pistas investigativas sobre o fazer docente na primeira metade do século XX. As configurações da sociedade em que viveu estão presentes em seu trabalho professoral, em sua poesia romântica e em suas cartas. É como se ela se autofigurasse ou se autorevelasses nos fazeres do seu cotidiano. Seu autoretrato está configurado em documentos, imagens, diários, cadernos, livros de matrícula, cartas que revelam práticas sociais e educativas de um tempo histórico em transição. O estudo de suas representações revela os projetos de vida de uma mulher para estudar, assumir a profissão docente, agir e interagir no mundo do trabalho e na sociedade do conhecimento, lutando para ser dona de seu próprio destino, apesar de órfã e paraplégica, conflitando com o paradigma ainda estável e dominante na primeira metade do século XX, da mulher mãe e dona de casa. Nesse sentido, a apropriação da vida de uma pessoa é feita pela escrita de sua história, configurada em representações biográficas que assumem a forma de biografias, autobiografias, diários, correspondências, memórias, constituindo-se em importante documentação para a compreensão de uma época, de um grupo social, de uma história pessoal. O curso de uma vida se desenvolve em um espaço-tempo no qual nasce a história de vida, apropriada pelo seu figurante através da escrita histórica. As investigações que trabalham com histórias de vida no campo educacional privilegiam a pesquisa biográfica, valorizando os planos teórico e empírico, reunindo materiais e observações, analisando documentos e materiais que contribuem para a compreensão de processos biográficos e de biografização. As fontes (auto) biográficas, constituídas por diários, autobiografias, biografias, cartas, memoriais, entrevistas, narrativas, relatos, cadernos escolares, entre tantas outras,tornaram-se há mais de trinta anos,objetos de investigação dos mais pertinentes em educação. Elas têm permitido criar novos territórios de indagação sobre a aprendizagem nos mais diversos domínios e nas mais distintas modalidades (SOUZA; PASSEGI; ABRAHÃO, 2008, p. 11). Com fundamento nessa afirmação e para compreender a profissão docente, colocouse em análise os registros, as representações biográficas figuradas pela Professora Marta Bezerra de Medeiros na primeira metade do século XX. Sua história de vida foi analisada a Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 285 partir dos enfoques profissional, privado e político-social, propondo-se a análise de documentos pessoais, como correspondências, poemas, fotografias, diários, e profissionais, como livros de matrícula, diários de classe, anotações, cadernos, apostilas, entre outros, em articulação com o estudo bibliográfico do contexto histórico. Realizou-se a articulação entre a história de vida professoral e sua época, ultrapassando os limites da narrativa pela interpretação. Pesquisas com histórias de vida no campo educacional evidenciam a pessoa do professor ao ressaltar a relevância da subjetividade como um dos conceitos articuladores dos questionamentos teóricos vigentes e das propostas que realimentam o estudo do método. [...] Com a centralização dos estudos e práticas de formação na pessoa do professor, busca-se abordar a constituição do trabalho docente, levando-se em conta os diferentes aspectos de sua história (pessoal, profissional e organizacional), a partir da tomada de consciência, do reconhecimento das fontes e dos dispositivos de construção/apropriação dos saberes da docência em articulação com o fazer cotidiano do/no trabalho pedagógico (GOMES; SOUZA, 2008, p. 127-128). A pesquisa biográfica é uma pesquisa qualitativa. O estudo da história de formação e profissional dos indivíduos implica em um trabalho de explicação e de análise, em que percursos são interpretados considerando a interface entre o social e o pessoal. [...] eles [os percursos] se inserem sempre em biografias que não são redutíveis ao mecanismo exclusivo de coerções sociais exteriores nem a uma instância puramente subjetiva e tiram, precisamente, a singularidade deles de um jogo único de inter-relações entre modelos sociais e experiências individuais, entre determinações sócio-históricas e história pessoal (SOUZA; PASSEGI; ABRAHÃO, 2008, p. 11). Com fundamento nessa explicação, a profissão docente foi discutida, considerando a articulação entre a história privada da Professora Marta Bezerra de Medeiros, realizada a partir do estudo de sua produção manuscrita cotidiana, da leitura desses documentos nas entrelinhas, e as determinações sócio-históricas, em um processo de interação entre a vida e a história, abrindo-se espaço também para o trabalho com fontes orais. No estudo da história de vida da Professora, sua trajetória foi concebida para além de uma existência individual, um caminho, uma linearidade, com um começo, um meio e um fim, como se fora um percurso orientado, numa ordem cronológica imutável, irreversível. Assim, foram estudados quadros de sua vida, muitas vezes descontínuos e contraditórios, mas unidos por elos invisíveis, repletos de significado, que estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais, permitindo a compreensão de uma época e a configuração da superfície social, em que age o indivíduo. Marta Bezerra de Medeiros e a profissão docente na primeira metade do século XX: formação ou vocação? Com o propósito de analisar a profissão docente, tomando a primeira metade do século XX como contexto de referência, refletiu-se sobre momentos da história de vida da Professora Marta Bezerra de Medeiros, definindo os papéis ocupados, assim como as práticas culturais desenvolvidas em sua existência, colocando em discussão fatores que Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 286 contribuíram para transformação, renovação e desvalorização da profissão professor atualmente. Nascida no início do século XX, na cidade de Jardim de Angicos /RN e exercido o magistério a partir de 1932, Marta Bezerra de Medeiros foi protagonista das lutas pela educação em seu Município, sendo nomeada professora municipal, numa época em que não existiam escolas municipais nessa região. Os acontecimentos que foram marcantes em sua vida estão representados em documentos biográficos, fotografias, adquirindo sentido a partir de processos de apropriação da realidade. As palavras de Carvalho (2009, p. 6) apontam a importância do trabalho da professora Marta Bezerra de Medeiros para sua época. A professora Marta Bezerra de Medeiros foi artífice do seu tempo. Tendo nascido mulher e se constituído professora na primeira metade do século XX, tanto reproduziu como reinterpretou/recriou as características e representações da mulher professora. Cabe então investigar as práticas culturais/sociais vivenciadas/desenvolvidas por Marta, ao lado das representações de sua prática docente em um contexto social local, em um momento em que se construíam novos saberes sobre a docência, tendo em vista a quebra de paradigmas sobre seu exercício. Um esboço de sua biografia contribuirá para compreender melhor quem era Marta Bezerra de Medeiros3 e situá-la em seu contexto histórico. Marta era filha do fazendeiro Manoel Bezerra da Cunha, proprietário da fazenda Nova Olinda e das terras da milhã dos Cunha, em Jardim de Angicos/RN, e Ana Hermina de Paiva Cunha (falecida após o nascimento de Marta) proveniente das famílias mais antigas da cidade. Pela decisão do pai em casar-se novamente, foi doada para adoção ao casal Manoel Lourenço e Maria Rosa Bandeira de Melo. Aos seis meses de vida, Marta foi acometida de poliomielite, que a deixou com sequelas no membro inferior esquerdo. Nascida em pleno início do século XX, recebeu influência na vida pessoal e profissional dos vários acontecimentos que marcaram o cenário sociopolítico e econômico em que viveu, presenciou e/ou participou durante sua formação. No período de 1915 a 1954, o país caracterizava-se por uma economia em transição, avançava para a industrialização, mas ainda se percebiam formas de produção colonial e agrária (NAGLE, 2001), principalmente no Nordeste, relações sociais de poder e ideias conservadoras, que implicavam na continuidade das relações econômicas. O processo de urbanização industrial fomentou o surgimento de grupos que lutavam pela construção de um novo país e o contato com a cultura trabalhista europeia e dos Estados Unidos despertou a necessidade de escolarização da população no intuito de preparar mão de obra qualificada para operar as máquinas. Resta lembrar que a educação do país caminhava a passos lentos, distante do desenvolvimento da sociedade, que já exigia para o processo de desenvolvimento do capitalismo uma mão de obra qualificada, ou pelo menos, pessoas alfabetizadas para operarem o trabalho nas fábricas. Segundo Carvalho (2009, p.8): O contexto histórico brasileiro da primeira metade do século XX é marcado por continuidades e transformações no plano político, econômico e social, que apontam para novos comportamentos, para o surgimento de conflitos internos, movimentos sociais, correntes de ideias, orientando para a conservação ou reformulação da ordem social. As ideias socialistas / anarquistas que já eram conhecidas e discutidas no Brasil nos primórdios da República Velha foram trazidas pelos estudantes brasileiros que voltavam da Europa e principalmente pelos novos imigrantes (que chegavam ao país com o objetivo de Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 287 construírem uma vida melhor). Nesse contexto, são criadas escolas baseadas na pedagogia das “escolas modernas” (que valorizavam a educação como ferramenta capaz de construir o cidadão ativo na sociedade), com ideias que contribuíram para a insatisfação e desejo de mudança durante esse período, cabendo à educação o papel de agente transformador ou pelo menos de agente esclarecedor da população de seus direitos e deveres. Com as ideias da escola renovada, a educação passou a ser compreendida como a ferramenta de ascensão social do indivíduo que vivia a margem da sociedade. Esse foi um dos fatores responsáveis pelas primeiras mudanças ocorridas no cenário educacional, pela veiculação de um ideário educacional que proclamava a importância da escola como via de reconstrução da sociedade brasileira, defendendo a necessidade de reorganização do ensino. Ghiraldelli (2006, p. 33) observa como era a pedagogia no período: A pedagogia ensinada até então, quase sem muita consciência, através da observação do comportamento do professor e repetida posteriormente pelos alunos ao se tornarem professores, era uma fusão da pedagogia formalizada pelo alemão Friedrich Herbart (1776-1841) com a pedagogia que vigorou no passado com a Companhia de Jesus, e que se mantinha forte até então (através dos princípios do Ratio Studiorum). Os princípios da escola tradicional começam a ser criticados, em função das transformações sociais e políticas que estavam acontecendo. Não havendo mais espaço para uma pedagogia influenciada por ideias religiosas e de tendência contemplativa, a pedagogia tradicional começou a sofrer rejeição, pois a burguesia buscava uma escola voltada para a realidade, que acompanhasse as transformações da sociedade em ascensão. Em 1920, os intelectuais do país se rendem as ideias inovadoras do filósofo norte americano John Dewey que traz para a educação brasileira as ideias do escolanovismo. O aluno é colocado no centro do processo de ensino e aprendizagem. As ideias veiculavam em alguns casos a liberdade e igualdade de direitos. Mas se de um lado os movimentos pregavam a ascensão da população à educação, ao trabalho, à participação, ao conhecimento da leitura e do cálculo, criando-se uma demanda por educação, por outro lado, as indústrias necessitavam de mão de obra qualificada e barata, necessidade surgida com o advento da industrialização, que exigia no mínimo a instrução da leitura e do cálculo para participação ativa no mercado de trabalho, o que de certa forma contribuiu para a escolarização da camada mais pobre da sociedade, que passou a ter direito ao acesso as escolas. É essa necessidade do capitalismo industrial de “fornecer conhecimentos a camadas cada vez mais numerosas, seja pelas exigências da própria produção, seja pelas necessidades de consumo que essa produção acarreta” (ROMANELLI, 1978, p. 59), que vai contribuir para a exigência da formação de recursos humanos, exercendo pressão no sistema educacional, sem, no entanto, apresentar uma proposta para mudanças profundas na estrutura educacional. Em face disso, as modificações foram superficiais, manifestando-se, no cenário brasileiro do período, uma defasagem entre educação e desenvolvimento, ou seja, entre “os produtos acabados oferecidos pela escola” e o que a indústria estava a exigir. Esse é o período em que Marta está tomando suas lições iniciais, que são marcadas predominantemente pela pedagogia tradicional, que exalta a memorização, a repetição, a disciplina, o castigo. A menina Marta corresponde às exigências educacionais de sua época: é disciplinada, responsável, inteligente, interiorizando o modelo professoral e pedagógico que contribuirá para sua formação professoral. Essas características estão evidenciadas em seu “boletim escolar” do Curso Complementar, datado de 1931, que apresenta suas notas e louva sua disciplina e empenho nas atividades diárias. Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 288 No cenário de formação inicial da Professora, que ocorreu entre os anos de 1929 a 1931, registra-se a falta de interesse pelo trabalho do professor, que não era contemplado pelas reformas educacionais promovidas no período. Conforme Ribeiro (2006, p. 32): [...] as verbas eram insuficientes para um atendimento a um tempo quantitativo e qualitativo melhor. [...] o modelo político-econômico (agrícola-comercial exportador), sendo contrário a redistribuição do lucro, comprometia tais verbas destinadas ao atendimento popular. E para o educador se colocava o dilema: atender menos e melhor, ou mais e pior. Esses fatores geraram insegurança no exercício da profissão professor, pois a abertura de um maior número de escolas traria para as salas de aula uma grande quantidade de alunos, o que comprometeria a qualidade do ensino e da aprendizagem, se não aumentasse/melhorasse também a quantidade/qualidade de educadores. Nesse cenário, o “otimismo pedagógico” que orientava para a ressignificação do modelo pedagógico tradicional conquista espaço entre educadores e estudiosos, visto que era a própria sociedade quem pensava / reivindicava a qualidade no ensino, preparando os estudantes para o mercado de trabalho. Assim a economia passou a influenciar as diretrizes da educação, como desejo de mudar os antigos paradigmas educacionais, e também como forma de trazer a educação para dentro da ideia de modernização em que o país se encontrava inserido. De acordo com Nagle (2001), as transformações econômicas, políticas, culturais pelas quais o Brasil passava nos anos de 1910 e 1920 teriam condicionado uma visão de educação que concebia a escola como sendo a instituição responsável pela difusão da cultura do progresso. A partir da década de 1910, alguns grupos passariam a buscar na educação sua bandeira de luta como foi o caso do Nacionalismo. O Nacionalismo começou a vigorar no Brasil durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Foi um movimento de respaldo no processo de industrialização do país, começando a ser inserido diretamente no contexto escolar, nas disciplinas de moral e cívica e na rotina escolar como por exemplo, no hasteamento da bandeira, na entoação dos hinos e cantigas acerca dos símbolos nacionais, na história com ênfase ao sentimento patriótico. Essas práticas tinham por objetivo despertar nas crianças e adolescentes o sentimento de amor e respeito a pátria, clamando pela valorização do nacional, que de acordo com Nagle (2001, p. 67), essa “pregação nacionalista centralizar-se-á na formação da consciência nacional”, buscando desconstruir a ideia de que a mestiçagem cria um povo fraco, contribuindo para a valorização do brasileiro nato. Preocupava-se em combater o analfabetismo e disseminar a instrução popular, pois só assim o povo poderia ter o direito ao voto respeitado e garantido (que deveria ser obrigatório e secreto), podendo participar diretamente das decisões políticas, tirando das mãos das oligarquias o domínio das decisões nacionais. Quando Marta inicia sua vivência escolar como aluna, as pregações nacionalistas manifestam-se no contexto nacional e local, refletindo-se nas atividades do cotidiano escolar, nas atividades cívicas de culto aos símbolos nacionais, nos “ditados” e “cópias”, realizados diariamente, incutindo pela repetição e memorização os valores sociais e políticos da época. Essas ideias estão presentes em seus cadernos de atividades datados de 1931, e repetidas diversas vezes em caligrafia muscular, em que novo e velho se articulam, configurando a tecitura do período Com a República e as reivindicações dos movimentos sociais pela instrução pública de qualidade para toda população brasileira, surge também o direito ao trabalho feminino, a mulher agora através do magistério podia fazer parte da economia familiar. O surgimento dos prédios escolares vai testemunhar o trabalho da mulher no magistério público, a mulher Revista HISTEDBR On-line Artigo Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 289 passa a sair de casa e dirigir-se aos prédios escolares, o que antes era visto como uma distração, passa-tempo, uma função doméstica, contribui para introduzir a mulher no seio do novo modelo urbano-industrial-capitalista em vigor, o que de certa forma contribuiu para a feminização do magistério. Pois só a mulher [...] por possuir características como a da pureza, ingenuidade e docilidade, poderia educar a infância lhes instruindo sobre as primeiras noções do bem. Como consequência disso, desse conceito de vocação da mulher para o magistério, o afastamento dos homens da carreira docente somente aumentou (GOMES; SOUZA, 2008. p. 4). Esse fato serviu de “análise para o entendimento de como a mulher, formada e formadora, carrega consigo a marca da sujeição a ordem social” (ESQUISANI; WERLE, 2010), compreendendo-se que esse pode ser um dos factores que contribuem para a crise da profissão professor, que passou a ser encarada como semiprofissão, gerando insegurança e descrença no exercício docente. No âmbito das mudanças sociais e educacionais vai sendo construída a identidade professoral da professora Marta Bezerra de Medeiros, que nascida em 1915, testemunha as dificuldades de escolarização da população no final da Primeira República. É nesse momento que mantém o primeiro contato com a escola, durante a infância, o que é interessante observar pelo fato de que a identidade professoral é construída a partir dessa etapa da vida em que se toma como modelo os primeiros mestres, seus comportamentos e valores. Essas representações somam-se a outras ao longo das histórias de vida, refletindose nas experiências cotidianas, ações, posturas profissionais e pessoais, configurando-se como saberes construídos sobre a profissão. É certo que se aprende o estilo de vida de ser professor, o que ocorre quando se observa o comportamento dos primeiros professores, momentos importantes em que se configura a representação da figura do professor no imaginário. Nesse sentido, a identidade do professor é construída em um processo contínuo, iniciado antes da formação inicial, prolongando-se ao longo da vida e atravessando múltiplos contextos, vivendo vários dilemas, construindo conhecimento em vários domínios. Sobre esse fato, Esquisani; Werle (2010, p. 106) contribuem para a indagação “sobre a marca que uma instituição é capaz de produzir em um sujeito a ela vinculado, configurando trajetórias e moldando visões de mundo com tamanha intensidade que é impossível separar, mesmo nas memórias (subjetivas), o sujeito que narra da instituição narrada”. É um processo entrelaçado à vida dos sujeitos um eterno moldar-se às características ligadas a educação. Nesse sentido, Esteve (1999) ressalta que as mudanças sociais ocorridas nos últimos anos também influenciaram a vida pessoal e profissional dos professores. Ou seja, construir sua identidade de professor, onde os saberes das experiências são importantes, mas somente estes não bastam, são insuficientes. A docência representa um desafio e exige conhecimentos, competências e preparação específica para seu exercício. Marta Bezerra de Medeiros estudou no Grupo Escolar Pedro II (ao estudar nos Grupos Escolares o (a) jovem além do ensino de boa qualidade, também gozava do reconhecimento/status social, passando a ser respeitado (a) pela sociedade. No caso das moças, estas eram tidas como os melhores partidos para o casamento. De acordo com Medeiros (2012a), os Grupos Escolares foram uma via de acesso das mulheres na vida econômica e social do país, pois com o direito à educação, el

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