file:///D:/Usu%C3%A1rios/Cliente/Downloads/8640205-10763-1-PB%20(1).pdfRevista HISTEDBR On-line Artigo
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 53, p. 280-304, out2013 – ISSN: 1676-2584 280
PROFESSORA MARTA BEZERRA DE MEDEIROS:
A PROFISSÃO DOCENTE NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
(RIO GRANDE DO NORTE, 1915-1954)
Maria Elizete Guimarães Carvalho
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
RESUMO
Este artigo tem por propósito refletir sobre a história de vida da Professora Marta Bezerra de
Medeiros, a partir dos resultados do Projeto de Iniciação Científica Professora Marta
Bezerra de Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954),
desenvolvido no período de agosto/2011 a julho/2012, na Universidade Federal da Paraíba.
A história de vida professoral apresenta conhecimentos sobre o exercício da profissão
docente na primeira metade do século XX, esclarecendo questões que marcam a crise
professoral atualmente, possibilitando a compreensão das relações educacionais, sociais e
políticas desenvolvidas nesse período histórico. Metodologicamente, trabalhou-se com os
procedimentos da história oral articulados ao diálogo com fontes escritas e iconográficas,
inserindo, nesse contexto investigativo, a pesquisa biográfica, alicerçando o trabalho com os
estudos de Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999), entre
outros. A configuração do ser professora não ocorre de forma isolada de suas condições
históricas. Nesse sentido, o trabalho da Professora Marta foi modelado pelas condições
históricas de seu tempo, mas por outro lado ressignificou a prática professoral da sociedade
ainda patriarcal e conservadora das primeiras décadas da República.
Palavras-chave: História de vida professoral. Profissão docente. Contexto histórico
republicano. Prática professoral.
TEACHER MARTA BEZERRA DE MEDEIROS: THE TEACHING PROFESSION
IN THE XX CENTURY FIRST HALF (RIO GRANDE DO NORTE, 1915 - 1954)
ABSTRACT
This article purposes to reflect about de life history of Teacher Marta Bezerra de Medeiros,
according de results of the Scientific Initiation Project named Professora Marta Bezerra de
Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954), developed
at August/2011 to July/2012, in Universidade Federal da Paraíba. The teach life history
presents information about the exercise of the teach profession in the XX century first half,
explaining questions that mark the teach crisis, actually, allowing the comprehension of the
educational, social and politic relations developed in that historic period. Methodologically,
worked with the oral history proceedings articulated to the dialog with written and
iconographic roots, inserting, in this investigative context, the bibliographic research basing
the work in Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999) and
others authors studies. The configuration of being teacher does not happen isolated of the
historic conditions. In this way, the Teacher Marta’s work was done by the historic
conditions of her time, but took a new mean to the teacher practice of the patriarchal and
conservative society of the Republic first decades.
Keywords: Teach life history, Teacher profession, Historic context of Republic, Teach
practice
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Introdução
Os estudos sobre as histórias de vida professorais têm revelado que é possível
conhecer a prática e a história da docência, o contexto social e histórico em que o percurso
de vida se desenvolveu, a partir de abordagens biográficas e / ou (auto) biográficas, que
colocam em conexão a vida pessoal e profissional, a vida e a história, fazendo “reaparecer
os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face
ao instituído” (NÓVOA, 1995a, p. 18).
Nessa perspectiva, situam-se propostas investigativas de histórias de vida
professorais, como tentativas de compreender o exercício da docência, as questões que
permearam/permeiam a profissão, os papéis atribuídos ao professor, a formação de sua
identidade, o espaço ocupado pelo docente ao longo da história, como também para
compreender a crise que tem caracterizado a profissão professor nos dias atuais. De acordo
com Nóvoa (1999), a desvalorização da profissão docente é um fato registrado faz muito
tempo. A docência vem sendo constantemente descaracterizada tanto pelos baixos salários,
como pelo excesso de papéis atribuídos ao professor, gerando uma situação de mal-estar na
profissão, resultando em desmotivação pessoal, abandono, insatisfação, indisposição,
desinvestimento na profissão e ausência de reflexão crítica (NOVOA, 1999).
Em face de tais evidências, que revelam a depreciação e autodepreciação da
docência, constitui-se preocupação o exercício da profissão professor no contexto atual,
preocupação relacionada à prática cotidiana, a depoimentos escutados em sala de aula, a
testemunhos gravados em investigações científicas, como também, a estudos realizados
sobre a profissão (NÓVOA, 1999), (VEIGA; ARAÚJO; KAPUZINIAK, 2005), a vida
(NÓVOA, 1995b) e a prática da docência (TARDIF; LESSARD, 2005). Nesse cenário
teórico e prático, quase todas as evidências apontam para a depreciação da profissão ou para
propostas de reconstrução, o que revela a crise porque passa a profissão docente, apesar das
sociedades atuais reconhecerem a necessidade de investimento na educação.
Nunes (2007, p. 22) explica a crise que marca a profissão docente atualmente:
[...] A referida crise ganha destaque em decorrência de questionamentos
que apontam as funções disciplinadora, controladora e ideológica, que
regulam tal profissão ao visar garantir o profissionalismo técnicoinstrumental
no sentido de atender à nova ordem social pautada por um
projeto neoliberal, em detrimento de um profissionalismo assentado em
uma conduta ético-reflexiva.
Tal configuração do profissionalismo docente cria um desconforto na profissão,
revelado em forma de crise que se projeta nos âmbitos profissional e social. Ora, a profissão
docente não se tem constituído um atrativo para os jovens que buscam os cursos superiores.
Esse fato, além das razões apontadas, tem uma explicação: existe um grande paradoxo
caracterizando a profissão professoral atualmente, pois, se por um lado glorifica-se a
sociedade do conhecimento, por outro, o tratamento dispensado aos professores revela o
desprestígio da profissão. Na explicação de tal ambiguidade, Nóvoa (2010, p. 12) aponta o
excesso de valorização da escola: “tudo se resolve dentro das escolas” e a diminuição da
profissão professor: “qualquer coisa serve para ser professor”.
Outro fator que também precisa ser considerado nessa reflexão diz respeito à
demanda pelos cursos de formação de professores. Depoimentos revelam que a procura é
justificada pela maior facilidade na entrada e também pela crença de que se trata de cursos
fáceis1
. Grande parte da sociedade continua valorizando os cursos que formam engenheiros,
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advogados, médicos, entre outros. Esses fatos geram insegurança e descrença na profissão
docente.
Incomodada com essa problemática, tentando compreendê-la e explicá-la, buscou-se
na história da docência, a partir de trajetórias de vida professorais, explicações para o
fenômeno dessa desvalorização, cruzando momentos de vida pessoal com momentos de
vida profissional, acreditando que é possível compreender a maneira de ser na maneira de
ensinar e a maneira de ensinar no modo de ser, o que revela ser “impossível separar o eu
profissional do eu pessoal” (NÓVOA, 1995a, p. 17). Nesse sentido, o conhecimento da
profissão docente ocorreria a partir da compreensão de vivências pessoais e profissionais, da
reflexão sobre trajetórias professorais em conexão com o contexto histórico.
Em face dessas considerações, objetiva-se nesse artigo refletir sobre a história de
vida da Professora Marta Bezerra de Madeiros2
, em seus aspectos pessoal e profissional,
tomando como período de análise a primeira metade do século XX, não como barreira ou
limite à investigação histórica, mas como parâmetro definidor do recorte temporal, tendo em
vista que o estudo de uma história de vida deve considerar a articulação entre presente,
passado e futuro, entre o tempo e o espaço vivido.
Histórias de vida professoral
A opção pela história de vida professoral para compreensão da profissão docente em
determinado momento histórico orienta para a investigação interna e externa da profissão,
para a configuração da ação pedagógica do professor, sua postura no exercício professoral,
como também as relações profissionais, sociais e políticas desenvolvidas ao longo de sua
vida. Da compreensão dessas relações e das trajetórias percorridas resultaram explicações
sobre o significado da docência e da crise que perpassa a profissão atualmente.
Nesse sentido, o estudo do passado da profissão docente constitui-se uma alternativa
de explicação para questões manifestas no presente, demonstrando ser imprescindível o
intercâmbio de experiências, a interpretação de relações, representações, fatos e
acontecimentos a partir de fontes documentais e da memória individual e/ou social.
Nessa configuração, a biografia como instrumento de pesquisa histórica transforma a
vida íntima ou profissional em matéria histórica, permitindo a compreensão de uma época e
a configuração da superfície social em que age o indivíduo. As práticas sociais e as
representações da docência configuradas na vida pessoal e profissional da Professora Marta
Bezerra de Medeiros forneceram subsídios para a compreensão da profissão professor na
sociedade brasileira da primeira metade do século XX, contribuindo para o esclarecimento
do mal-estar docente nos dias atuais.
A investigação de trajetórias de vida professorais significa também investigar a
articulação entre presente e passado, considerando que as pessoas não nascem professoras,
elas se constituem docentes, por processos de formação e autoformação, imbricados em um
tempo e espaço. Nessa compreensão, as questões que envolvem o ser professor atualmente
estariam relacionadas com o passado da profissão.
[...] pesquisar sobre professores e suas trajetórias é, em qualquer tempo,
trabalhar com um contexto muito anterior à prática em si, ao dia a dia, a
vida funcional. É levar em conta o período de formação, de ‘formar para a
ação’, e o período ainda anterior a este, a história de vida de cada um dos
sujeitos, o que os trouxe, em última instância, a preparação para o
exercício do magistério (ESQUISANI; WERLE, 2010, p. 106).
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Os estudos realizados sobre a história de vida de professores apontam trajetórias
educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o conhecimento de
vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas, evidenciando as vantagens e as limitações da
utilização desse recurso historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas
educacionais que marcaram/marcam determinado período histórico. São investigações que
estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e políticosociais,
orientando a interpretação de problemas educacionais contemporâneos.
Essa abordagem histórica revela que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com
sua época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo
a história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa
articulação traria explicações sobre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais.
Por outro lado, o trabalho com histórias de vida abre espaço para a exploração de
novas perspectivas do passado, proporcionadas por outras fontes documentais, como
correspondências, diários, poemas, colocando em evidência o paradigma da história vista de
baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas frequentemente ignoradas ou que
aparentemente não ocuparam um lugar especial na história.
Um trabalho que pretende investigar a profissão professoral a partir de trajetórias de
vida e de recortes biográficos procura desenvolver uma reflexão sobre a vida do professor,
seus anseios, suas lutas pela sobrevivência e pelo desempenho da profissão docente.
As histórias de vida professorais revelam questões que permeiam a profissão em
determinado momento e contexto histórico, possibilitando a compreensão das dificuldades,
condições, jeito de ser e agir docentes.
Na sociedade atual, as modificações ocorridas influenciam a vida pessoal e
profissional dos professores, criando-se desafios ao exercício da profissão, pela própria
indefinição dos papéis que são chamados a desempenhar. Nóvoa (2010, p.12) aponta alguns
fatores que fragilizam a profissão professor nesse contexto, como é o caso do “excesso das
missões da escola, o excesso de pedidos que a sociedade nos faz e, ao mesmo tempo, uma
cada vez maior fragilidade do estatuto docente”; a “retórica do professor reflexivo e, ao
mesmo tempo, a inexistência de condições de trabalho concretas [...] e desenvolvimento
profissional [...]” (p.13). “Os professores têm perdido prestígio, a profissão docente é mais
frágil do que era há alguns anos”.
As modificações sociais implicam novas configurações para o profissional professor,
que se sente perdido frente ao novo cenário educacional, acarretando o desgaste de sua
imagem. O “professor encontra-se numa encruzilhada: mudar, melhorar, produzir uma nova
referência de profissionalidade” (FARIAS, 2007, p. 75).
A reflexão sobre o desgaste operado na profissão docente aponta para o estudo de
histórias de vida professorais, como tentativa de compreender a profissão professor, sua
história, representações. Porque o indivíduo representa sua história, expressa sua existência
em narrativas, na relação consigo mesmo e com a coletividade, em diários, memórias,
discursos, correspondências, currículos, autobiografias, figurando acontecimentos, ideias,
relações, sentimentos, em um processo de biografização que vai além do processo “sóciohistoricamente
inscrito, formal e estruturalmente determinado”, realizando-se também como
“processo de socialização e construção da realidade social” (DELORY-MOMBERGER,
2008, p. 26).
As histórias de vida no campo educacional permitem compreender como os
profissionais da educação constroem seus percursos existenciais, sua trajetória de formação
e profissional, os saberes sobre a realidade e sobre si mesmos, em uma concepção da
biografização como interação entre o indivíduo e a sociedade.
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[...] No pólo educação-formação, ela [a abordagem biográfica] é
representada, particularmente, pela corrente das histórias de vida, cujos
dispositivos têm o intuito de esclarecer projetos pessoais e profissionais a
partir da apropriação de uma ‘história pessoal’ (DELORY-MOMBERGER,
2008, p. 26).
Nesse sentido, a história pessoal de uma professora, representada pela biografia,
contribui para compreensão da profissão docente em determinado momento histórico,
fornecendo pistas para a problemática da profissão atualmente.
Enquanto conjunto de representações que o indivíduo constroi da própria
vida e de sua história, a biografia tornou-se um componente e um
horizonte do campo educativo. A maneira como os indivíduos biografam
suas experiências e, em primeiro lugar, a maneira como integram em suas
construções biográficas o que fazem e o que são na família, na escola, na
sua profissão e na formação continuada são parte integrante do processo de
aprendizagem e de formação (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 30).
A Professora Marta Bezerra de Medeiros deixou na biografização de sua existência
indícios e pistas investigativas sobre o fazer docente na primeira metade do século XX. As
configurações da sociedade em que viveu estão presentes em seu trabalho professoral, em
sua poesia romântica e em suas cartas. É como se ela se autofigurasse ou se autorevelasses
nos fazeres do seu cotidiano. Seu autoretrato está configurado em documentos, imagens,
diários, cadernos, livros de matrícula, cartas que revelam práticas sociais e educativas de um
tempo histórico em transição. O estudo de suas representações revela os projetos de vida de
uma mulher para estudar, assumir a profissão docente, agir e interagir no mundo do trabalho
e na sociedade do conhecimento, lutando para ser dona de seu próprio destino, apesar de
órfã e paraplégica, conflitando com o paradigma ainda estável e dominante na primeira
metade do século XX, da mulher mãe e dona de casa.
Nesse sentido, a apropriação da vida de uma pessoa é feita pela escrita de sua
história, configurada em representações biográficas que assumem a forma de biografias,
autobiografias, diários, correspondências, memórias, constituindo-se em importante
documentação para a compreensão de uma época, de um grupo social, de uma história
pessoal. O curso de uma vida se desenvolve em um espaço-tempo no qual nasce a história
de vida, apropriada pelo seu figurante através da escrita histórica.
As investigações que trabalham com histórias de vida no campo educacional
privilegiam a pesquisa biográfica, valorizando os planos teórico e empírico, reunindo
materiais e observações, analisando documentos e materiais que contribuem para a
compreensão de processos biográficos e de biografização.
As fontes (auto) biográficas, constituídas por diários, autobiografias,
biografias, cartas, memoriais, entrevistas, narrativas, relatos, cadernos
escolares, entre tantas outras,tornaram-se há mais de trinta anos,objetos de
investigação dos mais pertinentes em educação. Elas têm permitido criar
novos territórios de indagação sobre a aprendizagem nos mais diversos
domínios e nas mais distintas modalidades (SOUZA; PASSEGI;
ABRAHÃO, 2008, p. 11).
Com fundamento nessa afirmação e para compreender a profissão docente, colocouse
em análise os registros, as representações biográficas figuradas pela Professora Marta
Bezerra de Medeiros na primeira metade do século XX. Sua história de vida foi analisada a
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partir dos enfoques profissional, privado e político-social, propondo-se a análise de
documentos pessoais, como correspondências, poemas, fotografias, diários, e profissionais,
como livros de matrícula, diários de classe, anotações, cadernos, apostilas, entre outros, em
articulação com o estudo bibliográfico do contexto histórico. Realizou-se a articulação entre
a história de vida professoral e sua época, ultrapassando os limites da narrativa pela
interpretação.
Pesquisas com histórias de vida no campo educacional evidenciam a
pessoa do professor ao ressaltar a relevância da subjetividade como um dos
conceitos articuladores dos questionamentos teóricos vigentes e das
propostas que realimentam o estudo do método. [...] Com a centralização
dos estudos e práticas de formação na pessoa do professor, busca-se
abordar a constituição do trabalho docente, levando-se em conta os
diferentes aspectos de sua história (pessoal, profissional e organizacional),
a partir da tomada de consciência, do reconhecimento das fontes e dos
dispositivos de construção/apropriação dos saberes da docência em
articulação com o fazer cotidiano do/no trabalho pedagógico (GOMES;
SOUZA, 2008, p. 127-128).
A pesquisa biográfica é uma pesquisa qualitativa. O estudo da história de formação e
profissional dos indivíduos implica em um trabalho de explicação e de análise, em que
percursos são interpretados considerando a interface entre o social e o pessoal.
[...] eles [os percursos] se inserem sempre em biografias que não são
redutíveis ao mecanismo exclusivo de coerções sociais exteriores nem a
uma instância puramente subjetiva e tiram, precisamente, a singularidade
deles de um jogo único de inter-relações entre modelos sociais e
experiências individuais, entre determinações sócio-históricas e história
pessoal (SOUZA; PASSEGI; ABRAHÃO, 2008, p. 11).
Com fundamento nessa explicação, a profissão docente foi discutida, considerando a
articulação entre a história privada da Professora Marta Bezerra de Medeiros, realizada a
partir do estudo de sua produção manuscrita cotidiana, da leitura desses documentos nas
entrelinhas, e as determinações sócio-históricas, em um processo de interação entre a vida e
a história, abrindo-se espaço também para o trabalho com fontes orais.
No estudo da história de vida da Professora, sua trajetória foi concebida para além de
uma existência individual, um caminho, uma linearidade, com um começo, um meio e um
fim, como se fora um percurso orientado, numa ordem cronológica imutável, irreversível.
Assim, foram estudados quadros de sua vida, muitas vezes descontínuos e contraditórios,
mas unidos por elos invisíveis, repletos de significado, que estabelecem conexões e
coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais, permitindo a
compreensão de uma época e a configuração da superfície social, em que age o indivíduo.
Marta Bezerra de Medeiros e a profissão docente na primeira metade do século XX:
formação ou vocação?
Com o propósito de analisar a profissão docente, tomando a primeira metade do
século XX como contexto de referência, refletiu-se sobre momentos da história de vida da
Professora Marta Bezerra de Medeiros, definindo os papéis ocupados, assim como as
práticas culturais desenvolvidas em sua existência, colocando em discussão fatores que
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contribuíram para transformação, renovação e desvalorização da profissão professor
atualmente.
Nascida no início do século XX, na cidade de Jardim de Angicos /RN e exercido o
magistério a partir de 1932, Marta Bezerra de Medeiros foi protagonista das lutas pela
educação em seu Município, sendo nomeada professora municipal, numa época em que não
existiam escolas municipais nessa região. Os acontecimentos que foram marcantes em sua
vida estão representados em documentos biográficos, fotografias, adquirindo sentido a partir
de processos de apropriação da realidade. As palavras de Carvalho (2009, p. 6) apontam a
importância do trabalho da professora Marta Bezerra de Medeiros para sua época.
A professora Marta Bezerra de Medeiros foi artífice do seu tempo. Tendo
nascido mulher e se constituído professora na primeira metade do século
XX, tanto reproduziu como reinterpretou/recriou as características e
representações da mulher professora. Cabe então investigar as práticas
culturais/sociais vivenciadas/desenvolvidas por Marta, ao lado das
representações de sua prática docente em um contexto social local, em um
momento em que se construíam novos saberes sobre a docência, tendo em
vista a quebra de paradigmas sobre seu exercício.
Um esboço de sua biografia contribuirá para compreender melhor quem era Marta
Bezerra de Medeiros3
e situá-la em seu contexto histórico. Marta era filha do fazendeiro
Manoel Bezerra da Cunha, proprietário da fazenda Nova Olinda e das terras da milhã dos
Cunha, em Jardim de Angicos/RN, e Ana Hermina de Paiva Cunha (falecida após o
nascimento de Marta) proveniente das famílias mais antigas da cidade. Pela decisão do pai
em casar-se novamente, foi doada para adoção ao casal Manoel Lourenço e Maria Rosa
Bandeira de Melo. Aos seis meses de vida, Marta foi acometida de poliomielite, que a
deixou com sequelas no membro inferior esquerdo.
Nascida em pleno início do século XX, recebeu influência na vida pessoal e
profissional dos vários acontecimentos que marcaram o cenário sociopolítico e econômico
em que viveu, presenciou e/ou participou durante sua formação. No período de 1915 a 1954,
o país caracterizava-se por uma economia em transição, avançava para a industrialização,
mas ainda se percebiam formas de produção colonial e agrária (NAGLE, 2001),
principalmente no Nordeste, relações sociais de poder e ideias conservadoras, que
implicavam na continuidade das relações econômicas. O processo de urbanização industrial
fomentou o surgimento de grupos que lutavam pela construção de um novo país e o contato
com a cultura trabalhista europeia e dos Estados Unidos despertou a necessidade de
escolarização da população no intuito de preparar mão de obra qualificada para operar as
máquinas. Resta lembrar que a educação do país caminhava a passos lentos, distante do
desenvolvimento da sociedade, que já exigia para o processo de desenvolvimento do
capitalismo uma mão de obra qualificada, ou pelo menos, pessoas alfabetizadas para
operarem o trabalho nas fábricas. Segundo Carvalho (2009, p.8):
O contexto histórico brasileiro da primeira metade do século XX é
marcado por continuidades e transformações no plano político, econômico
e social, que apontam para novos comportamentos, para o surgimento de
conflitos internos, movimentos sociais, correntes de ideias, orientando para
a conservação ou reformulação da ordem social.
As ideias socialistas / anarquistas que já eram conhecidas e discutidas no Brasil nos
primórdios da República Velha foram trazidas pelos estudantes brasileiros que voltavam da
Europa e principalmente pelos novos imigrantes (que chegavam ao país com o objetivo de
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construírem uma vida melhor). Nesse contexto, são criadas escolas baseadas na pedagogia
das “escolas modernas” (que valorizavam a educação como ferramenta capaz de construir o
cidadão ativo na sociedade), com ideias que contribuíram para a insatisfação e desejo de
mudança durante esse período, cabendo à educação o papel de agente transformador ou pelo
menos de agente esclarecedor da população de seus direitos e deveres. Com as ideias da
escola renovada, a educação passou a ser compreendida como a ferramenta de ascensão
social do indivíduo que vivia a margem da sociedade. Esse foi um dos fatores responsáveis
pelas primeiras mudanças ocorridas no cenário educacional, pela veiculação de um ideário
educacional que proclamava a importância da escola como via de reconstrução da sociedade
brasileira, defendendo a necessidade de reorganização do ensino. Ghiraldelli (2006, p. 33)
observa como era a pedagogia no período:
A pedagogia ensinada até então, quase sem muita consciência, através da
observação do comportamento do professor e repetida posteriormente
pelos alunos ao se tornarem professores, era uma fusão da pedagogia
formalizada pelo alemão Friedrich Herbart (1776-1841) com a pedagogia
que vigorou no passado com a Companhia de Jesus, e que se mantinha
forte até então (através dos princípios do Ratio Studiorum).
Os princípios da escola tradicional começam a ser criticados, em função das
transformações sociais e políticas que estavam acontecendo. Não havendo mais espaço para
uma pedagogia influenciada por ideias religiosas e de tendência contemplativa, a pedagogia
tradicional começou a sofrer rejeição, pois a burguesia buscava uma escola voltada para a
realidade, que acompanhasse as transformações da sociedade em ascensão. Em 1920, os
intelectuais do país se rendem as ideias inovadoras do filósofo norte americano John Dewey
que traz para a educação brasileira as ideias do escolanovismo. O aluno é colocado no
centro do processo de ensino e aprendizagem.
As ideias veiculavam em alguns casos a liberdade e igualdade de direitos. Mas se de
um lado os movimentos pregavam a ascensão da população à educação, ao trabalho, à
participação, ao conhecimento da leitura e do cálculo, criando-se uma demanda por
educação, por outro lado, as indústrias necessitavam de mão de obra qualificada e barata,
necessidade surgida com o advento da industrialização, que exigia no mínimo a instrução da
leitura e do cálculo para participação ativa no mercado de trabalho, o que de certa forma
contribuiu para a escolarização da camada mais pobre da sociedade, que passou a ter direito
ao acesso as escolas. É essa necessidade do capitalismo industrial de “fornecer
conhecimentos a camadas cada vez mais numerosas, seja pelas exigências da própria
produção, seja pelas necessidades de consumo que essa produção acarreta” (ROMANELLI,
1978, p. 59), que vai contribuir para a exigência da formação de recursos humanos,
exercendo pressão no sistema educacional, sem, no entanto, apresentar uma proposta para
mudanças profundas na estrutura educacional. Em face disso, as modificações foram
superficiais, manifestando-se, no cenário brasileiro do período, uma defasagem entre
educação e desenvolvimento, ou seja, entre “os produtos acabados oferecidos pela escola” e
o que a indústria estava a exigir.
Esse é o período em que Marta está tomando suas lições iniciais, que são marcadas
predominantemente pela pedagogia tradicional, que exalta a memorização, a repetição, a
disciplina, o castigo. A menina Marta corresponde às exigências educacionais de sua época:
é disciplinada, responsável, inteligente, interiorizando o modelo professoral e pedagógico
que contribuirá para sua formação professoral. Essas características estão evidenciadas em
seu “boletim escolar” do Curso Complementar, datado de 1931, que apresenta suas notas e
louva sua disciplina e empenho nas atividades diárias.
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No cenário de formação inicial da Professora, que ocorreu entre os anos de 1929 a
1931, registra-se a falta de interesse pelo trabalho do professor, que não era contemplado
pelas reformas educacionais promovidas no período. Conforme Ribeiro (2006, p. 32):
[...] as verbas eram insuficientes para um atendimento a um tempo
quantitativo e qualitativo melhor. [...] o modelo político-econômico
(agrícola-comercial exportador), sendo contrário a redistribuição do lucro,
comprometia tais verbas destinadas ao atendimento popular. E para o
educador se colocava o dilema: atender menos e melhor, ou mais e pior.
Esses fatores geraram insegurança no exercício da profissão professor, pois a
abertura de um maior número de escolas traria para as salas de aula uma grande quantidade
de alunos, o que comprometeria a qualidade do ensino e da aprendizagem, se não
aumentasse/melhorasse também a quantidade/qualidade de educadores. Nesse cenário, o
“otimismo pedagógico” que orientava para a ressignificação do modelo pedagógico
tradicional conquista espaço entre educadores e estudiosos, visto que era a própria sociedade
quem pensava / reivindicava a qualidade no ensino, preparando os estudantes para o
mercado de trabalho. Assim a economia passou a influenciar as diretrizes da educação,
como desejo de mudar os antigos paradigmas educacionais, e também como forma de trazer
a educação para dentro da ideia de modernização em que o país se encontrava inserido.
De acordo com Nagle (2001), as transformações econômicas, políticas, culturais
pelas quais o Brasil passava nos anos de 1910 e 1920 teriam condicionado uma visão de
educação que concebia a escola como sendo a instituição responsável pela difusão da
cultura do progresso. A partir da década de 1910, alguns grupos passariam a buscar na
educação sua bandeira de luta como foi o caso do Nacionalismo.
O Nacionalismo começou a vigorar no Brasil durante a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Foi um movimento de respaldo no processo de industrialização do país,
começando a ser inserido diretamente no contexto escolar, nas disciplinas de moral e cívica
e na rotina escolar como por exemplo, no hasteamento da bandeira, na entoação dos hinos e
cantigas acerca dos símbolos nacionais, na história com ênfase ao sentimento patriótico.
Essas práticas tinham por objetivo despertar nas crianças e adolescentes o sentimento de
amor e respeito a pátria, clamando pela valorização do nacional, que de acordo com Nagle
(2001, p. 67), essa “pregação nacionalista centralizar-se-á na formação da consciência
nacional”, buscando desconstruir a ideia de que a mestiçagem cria um povo fraco,
contribuindo para a valorização do brasileiro nato. Preocupava-se em combater o
analfabetismo e disseminar a instrução popular, pois só assim o povo poderia ter o direito ao
voto respeitado e garantido (que deveria ser obrigatório e secreto), podendo participar
diretamente das decisões políticas, tirando das mãos das oligarquias o domínio das decisões
nacionais.
Quando Marta inicia sua vivência escolar como aluna, as pregações nacionalistas
manifestam-se no contexto nacional e local, refletindo-se nas atividades do cotidiano
escolar, nas atividades cívicas de culto aos símbolos nacionais, nos “ditados” e “cópias”,
realizados diariamente, incutindo pela repetição e memorização os valores sociais e
políticos da época. Essas ideias estão presentes em seus cadernos de atividades datados de
1931, e repetidas diversas vezes em caligrafia muscular, em que novo e velho se articulam,
configurando a tecitura do período
Com a República e as reivindicações dos movimentos sociais pela instrução pública
de qualidade para toda população brasileira, surge também o direito ao trabalho feminino, a
mulher agora através do magistério podia fazer parte da economia familiar. O surgimento
dos prédios escolares vai testemunhar o trabalho da mulher no magistério público, a mulher
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passa a sair de casa e dirigir-se aos prédios escolares, o que antes era visto como uma
distração, passa-tempo, uma função doméstica, contribui para introduzir a mulher no seio do
novo modelo urbano-industrial-capitalista em vigor, o que de certa forma contribuiu para a
feminização do magistério. Pois só a mulher
[...] por possuir características como a da pureza, ingenuidade e docilidade,
poderia educar a infância lhes instruindo sobre as primeiras noções do
bem. Como consequência disso, desse conceito de vocação da mulher para
o magistério, o afastamento dos homens da carreira docente somente
aumentou (GOMES; SOUZA, 2008. p. 4).
Esse fato serviu de “análise para o entendimento de como a mulher, formada e
formadora, carrega consigo a marca da sujeição a ordem social” (ESQUISANI; WERLE,
2010), compreendendo-se que esse pode ser um dos factores que contribuem para a crise da
profissão professor, que passou a ser encarada como semiprofissão, gerando insegurança e
descrença no exercício docente.
No âmbito das mudanças sociais e educacionais vai sendo construída a identidade
professoral da professora Marta Bezerra de Medeiros, que nascida em 1915, testemunha as
dificuldades de escolarização da população no final da Primeira República. É nesse
momento que mantém o primeiro contato com a escola, durante a infância, o que é
interessante observar pelo fato de que a identidade professoral é construída a partir dessa
etapa da vida em que se toma como modelo os primeiros mestres, seus comportamentos e
valores. Essas representações somam-se a outras ao longo das histórias de vida, refletindose
nas experiências cotidianas, ações, posturas profissionais e pessoais, configurando-se
como saberes construídos sobre a profissão.
É certo que se aprende o estilo de vida de ser professor, o que ocorre quando se
observa o comportamento dos primeiros professores, momentos importantes em que se
configura a representação da figura do professor no imaginário. Nesse sentido, a identidade
do professor é construída em um processo contínuo, iniciado antes da formação inicial,
prolongando-se ao longo da vida e atravessando múltiplos contextos, vivendo vários
dilemas, construindo conhecimento em vários domínios. Sobre esse fato, Esquisani; Werle
(2010, p. 106) contribuem para a indagação “sobre a marca que uma instituição é capaz de
produzir em um sujeito a ela vinculado, configurando trajetórias e moldando visões de
mundo com tamanha intensidade que é impossível separar, mesmo nas memórias
(subjetivas), o sujeito que narra da instituição narrada”. É um processo entrelaçado à vida
dos sujeitos um eterno moldar-se às características ligadas a educação.
Nesse sentido, Esteve (1999) ressalta que as mudanças sociais ocorridas nos últimos
anos também influenciaram a vida pessoal e profissional dos professores. Ou seja, construir
sua identidade de professor, onde os saberes das experiências são importantes, mas somente
estes não bastam, são insuficientes. A docência representa um desafio e exige
conhecimentos, competências e preparação específica para seu exercício.
Marta Bezerra de Medeiros estudou no Grupo Escolar Pedro II (ao estudar nos
Grupos Escolares o (a) jovem além do ensino de boa qualidade, também gozava do
reconhecimento/status social, passando a ser respeitado (a) pela sociedade. No caso das
moças, estas eram tidas como os melhores partidos para o casamento. De acordo com
Medeiros (2012a), os Grupos Escolares foram uma via de acesso das mulheres na vida
econômica e social do país, pois com o direito à educação, el
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PROFESSORA MARTA BEZERRA DE MEDEIROS:
A PROFISSÃO DOCENTE NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
(RIO GRANDE DO NORTE, 1915-1954)
Maria Elizete Guimarães Carvalho
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
RESUMO
Este artigo tem por propósito refletir sobre a história de vida da Professora Marta Bezerra de
Medeiros, a partir dos resultados do Projeto de Iniciação Científica Professora Marta
Bezerra de Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954),
desenvolvido no período de agosto/2011 a julho/2012, na Universidade Federal da Paraíba.
A história de vida professoral apresenta conhecimentos sobre o exercício da profissão
docente na primeira metade do século XX, esclarecendo questões que marcam a crise
professoral atualmente, possibilitando a compreensão das relações educacionais, sociais e
políticas desenvolvidas nesse período histórico. Metodologicamente, trabalhou-se com os
procedimentos da história oral articulados ao diálogo com fontes escritas e iconográficas,
inserindo, nesse contexto investigativo, a pesquisa biográfica, alicerçando o trabalho com os
estudos de Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999), entre
outros. A configuração do ser professora não ocorre de forma isolada de suas condições
históricas. Nesse sentido, o trabalho da Professora Marta foi modelado pelas condições
históricas de seu tempo, mas por outro lado ressignificou a prática professoral da sociedade
ainda patriarcal e conservadora das primeiras décadas da República.
Palavras-chave: História de vida professoral. Profissão docente. Contexto histórico
republicano. Prática professoral.
TEACHER MARTA BEZERRA DE MEDEIROS: THE TEACHING PROFESSION
IN THE XX CENTURY FIRST HALF (RIO GRANDE DO NORTE, 1915 - 1954)
ABSTRACT
This article purposes to reflect about de life history of Teacher Marta Bezerra de Medeiros,
according de results of the Scientific Initiation Project named Professora Marta Bezerra de
Medeiros: a profissão docente na primeira metade do século XX (1915 – 1954), developed
at August/2011 to July/2012, in Universidade Federal da Paraíba. The teach life history
presents information about the exercise of the teach profession in the XX century first half,
explaining questions that mark the teach crisis, actually, allowing the comprehension of the
educational, social and politic relations developed in that historic period. Methodologically,
worked with the oral history proceedings articulated to the dialog with written and
iconographic roots, inserting, in this investigative context, the bibliographic research basing
the work in Passegi (2010), Delory-Momberger (2008), Esteve (1999), Nóvoa (1999) and
others authors studies. The configuration of being teacher does not happen isolated of the
historic conditions. In this way, the Teacher Marta’s work was done by the historic
conditions of her time, but took a new mean to the teacher practice of the patriarchal and
conservative society of the Republic first decades.
Keywords: Teach life history, Teacher profession, Historic context of Republic, Teach
practice
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Introdução
Os estudos sobre as histórias de vida professorais têm revelado que é possível
conhecer a prática e a história da docência, o contexto social e histórico em que o percurso
de vida se desenvolveu, a partir de abordagens biográficas e / ou (auto) biográficas, que
colocam em conexão a vida pessoal e profissional, a vida e a história, fazendo “reaparecer
os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face
ao instituído” (NÓVOA, 1995a, p. 18).
Nessa perspectiva, situam-se propostas investigativas de histórias de vida
professorais, como tentativas de compreender o exercício da docência, as questões que
permearam/permeiam a profissão, os papéis atribuídos ao professor, a formação de sua
identidade, o espaço ocupado pelo docente ao longo da história, como também para
compreender a crise que tem caracterizado a profissão professor nos dias atuais. De acordo
com Nóvoa (1999), a desvalorização da profissão docente é um fato registrado faz muito
tempo. A docência vem sendo constantemente descaracterizada tanto pelos baixos salários,
como pelo excesso de papéis atribuídos ao professor, gerando uma situação de mal-estar na
profissão, resultando em desmotivação pessoal, abandono, insatisfação, indisposição,
desinvestimento na profissão e ausência de reflexão crítica (NOVOA, 1999).
Em face de tais evidências, que revelam a depreciação e autodepreciação da
docência, constitui-se preocupação o exercício da profissão professor no contexto atual,
preocupação relacionada à prática cotidiana, a depoimentos escutados em sala de aula, a
testemunhos gravados em investigações científicas, como também, a estudos realizados
sobre a profissão (NÓVOA, 1999), (VEIGA; ARAÚJO; KAPUZINIAK, 2005), a vida
(NÓVOA, 1995b) e a prática da docência (TARDIF; LESSARD, 2005). Nesse cenário
teórico e prático, quase todas as evidências apontam para a depreciação da profissão ou para
propostas de reconstrução, o que revela a crise porque passa a profissão docente, apesar das
sociedades atuais reconhecerem a necessidade de investimento na educação.
Nunes (2007, p. 22) explica a crise que marca a profissão docente atualmente:
[...] A referida crise ganha destaque em decorrência de questionamentos
que apontam as funções disciplinadora, controladora e ideológica, que
regulam tal profissão ao visar garantir o profissionalismo técnicoinstrumental
no sentido de atender à nova ordem social pautada por um
projeto neoliberal, em detrimento de um profissionalismo assentado em
uma conduta ético-reflexiva.
Tal configuração do profissionalismo docente cria um desconforto na profissão,
revelado em forma de crise que se projeta nos âmbitos profissional e social. Ora, a profissão
docente não se tem constituído um atrativo para os jovens que buscam os cursos superiores.
Esse fato, além das razões apontadas, tem uma explicação: existe um grande paradoxo
caracterizando a profissão professoral atualmente, pois, se por um lado glorifica-se a
sociedade do conhecimento, por outro, o tratamento dispensado aos professores revela o
desprestígio da profissão. Na explicação de tal ambiguidade, Nóvoa (2010, p. 12) aponta o
excesso de valorização da escola: “tudo se resolve dentro das escolas” e a diminuição da
profissão professor: “qualquer coisa serve para ser professor”.
Outro fator que também precisa ser considerado nessa reflexão diz respeito à
demanda pelos cursos de formação de professores. Depoimentos revelam que a procura é
justificada pela maior facilidade na entrada e também pela crença de que se trata de cursos
fáceis1
. Grande parte da sociedade continua valorizando os cursos que formam engenheiros,
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advogados, médicos, entre outros. Esses fatos geram insegurança e descrença na profissão
docente.
Incomodada com essa problemática, tentando compreendê-la e explicá-la, buscou-se
na história da docência, a partir de trajetórias de vida professorais, explicações para o
fenômeno dessa desvalorização, cruzando momentos de vida pessoal com momentos de
vida profissional, acreditando que é possível compreender a maneira de ser na maneira de
ensinar e a maneira de ensinar no modo de ser, o que revela ser “impossível separar o eu
profissional do eu pessoal” (NÓVOA, 1995a, p. 17). Nesse sentido, o conhecimento da
profissão docente ocorreria a partir da compreensão de vivências pessoais e profissionais, da
reflexão sobre trajetórias professorais em conexão com o contexto histórico.
Em face dessas considerações, objetiva-se nesse artigo refletir sobre a história de
vida da Professora Marta Bezerra de Madeiros2
, em seus aspectos pessoal e profissional,
tomando como período de análise a primeira metade do século XX, não como barreira ou
limite à investigação histórica, mas como parâmetro definidor do recorte temporal, tendo em
vista que o estudo de uma história de vida deve considerar a articulação entre presente,
passado e futuro, entre o tempo e o espaço vivido.
Histórias de vida professoral
A opção pela história de vida professoral para compreensão da profissão docente em
determinado momento histórico orienta para a investigação interna e externa da profissão,
para a configuração da ação pedagógica do professor, sua postura no exercício professoral,
como também as relações profissionais, sociais e políticas desenvolvidas ao longo de sua
vida. Da compreensão dessas relações e das trajetórias percorridas resultaram explicações
sobre o significado da docência e da crise que perpassa a profissão atualmente.
Nesse sentido, o estudo do passado da profissão docente constitui-se uma alternativa
de explicação para questões manifestas no presente, demonstrando ser imprescindível o
intercâmbio de experiências, a interpretação de relações, representações, fatos e
acontecimentos a partir de fontes documentais e da memória individual e/ou social.
Nessa configuração, a biografia como instrumento de pesquisa histórica transforma a
vida íntima ou profissional em matéria histórica, permitindo a compreensão de uma época e
a configuração da superfície social em que age o indivíduo. As práticas sociais e as
representações da docência configuradas na vida pessoal e profissional da Professora Marta
Bezerra de Medeiros forneceram subsídios para a compreensão da profissão professor na
sociedade brasileira da primeira metade do século XX, contribuindo para o esclarecimento
do mal-estar docente nos dias atuais.
A investigação de trajetórias de vida professorais significa também investigar a
articulação entre presente e passado, considerando que as pessoas não nascem professoras,
elas se constituem docentes, por processos de formação e autoformação, imbricados em um
tempo e espaço. Nessa compreensão, as questões que envolvem o ser professor atualmente
estariam relacionadas com o passado da profissão.
[...] pesquisar sobre professores e suas trajetórias é, em qualquer tempo,
trabalhar com um contexto muito anterior à prática em si, ao dia a dia, a
vida funcional. É levar em conta o período de formação, de ‘formar para a
ação’, e o período ainda anterior a este, a história de vida de cada um dos
sujeitos, o que os trouxe, em última instância, a preparação para o
exercício do magistério (ESQUISANI; WERLE, 2010, p. 106).
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Os estudos realizados sobre a história de vida de professores apontam trajetórias
educacionais desconhecidas e inusitadas, abordagens que permitem o conhecimento de
vidas desaparecidas, de mudanças e rupturas, evidenciando as vantagens e as limitações da
utilização desse recurso historiográfico para o conhecimento e análise dos problemas
educacionais que marcaram/marcam determinado período histórico. São investigações que
estabelecem conexões e coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e políticosociais,
orientando a interpretação de problemas educacionais contemporâneos.
Essa abordagem histórica revela que é o entrelaçamento da vida de uma pessoa com
sua época e com seu contexto que constitui suas experiências. Na verdade, compreendendo
a história de vida de uma pessoa estaria compreendendo seu próprio tempo, já que essa
articulação traria explicações sobre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais.
Por outro lado, o trabalho com histórias de vida abre espaço para a exploração de
novas perspectivas do passado, proporcionadas por outras fontes documentais, como
correspondências, diários, poemas, colocando em evidência o paradigma da história vista de
baixo, de pesquisar vidas e histórias de pessoas frequentemente ignoradas ou que
aparentemente não ocuparam um lugar especial na história.
Um trabalho que pretende investigar a profissão professoral a partir de trajetórias de
vida e de recortes biográficos procura desenvolver uma reflexão sobre a vida do professor,
seus anseios, suas lutas pela sobrevivência e pelo desempenho da profissão docente.
As histórias de vida professorais revelam questões que permeiam a profissão em
determinado momento e contexto histórico, possibilitando a compreensão das dificuldades,
condições, jeito de ser e agir docentes.
Na sociedade atual, as modificações ocorridas influenciam a vida pessoal e
profissional dos professores, criando-se desafios ao exercício da profissão, pela própria
indefinição dos papéis que são chamados a desempenhar. Nóvoa (2010, p.12) aponta alguns
fatores que fragilizam a profissão professor nesse contexto, como é o caso do “excesso das
missões da escola, o excesso de pedidos que a sociedade nos faz e, ao mesmo tempo, uma
cada vez maior fragilidade do estatuto docente”; a “retórica do professor reflexivo e, ao
mesmo tempo, a inexistência de condições de trabalho concretas [...] e desenvolvimento
profissional [...]” (p.13). “Os professores têm perdido prestígio, a profissão docente é mais
frágil do que era há alguns anos”.
As modificações sociais implicam novas configurações para o profissional professor,
que se sente perdido frente ao novo cenário educacional, acarretando o desgaste de sua
imagem. O “professor encontra-se numa encruzilhada: mudar, melhorar, produzir uma nova
referência de profissionalidade” (FARIAS, 2007, p. 75).
A reflexão sobre o desgaste operado na profissão docente aponta para o estudo de
histórias de vida professorais, como tentativa de compreender a profissão professor, sua
história, representações. Porque o indivíduo representa sua história, expressa sua existência
em narrativas, na relação consigo mesmo e com a coletividade, em diários, memórias,
discursos, correspondências, currículos, autobiografias, figurando acontecimentos, ideias,
relações, sentimentos, em um processo de biografização que vai além do processo “sóciohistoricamente
inscrito, formal e estruturalmente determinado”, realizando-se também como
“processo de socialização e construção da realidade social” (DELORY-MOMBERGER,
2008, p. 26).
As histórias de vida no campo educacional permitem compreender como os
profissionais da educação constroem seus percursos existenciais, sua trajetória de formação
e profissional, os saberes sobre a realidade e sobre si mesmos, em uma concepção da
biografização como interação entre o indivíduo e a sociedade.
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[...] No pólo educação-formação, ela [a abordagem biográfica] é
representada, particularmente, pela corrente das histórias de vida, cujos
dispositivos têm o intuito de esclarecer projetos pessoais e profissionais a
partir da apropriação de uma ‘história pessoal’ (DELORY-MOMBERGER,
2008, p. 26).
Nesse sentido, a história pessoal de uma professora, representada pela biografia,
contribui para compreensão da profissão docente em determinado momento histórico,
fornecendo pistas para a problemática da profissão atualmente.
Enquanto conjunto de representações que o indivíduo constroi da própria
vida e de sua história, a biografia tornou-se um componente e um
horizonte do campo educativo. A maneira como os indivíduos biografam
suas experiências e, em primeiro lugar, a maneira como integram em suas
construções biográficas o que fazem e o que são na família, na escola, na
sua profissão e na formação continuada são parte integrante do processo de
aprendizagem e de formação (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 30).
A Professora Marta Bezerra de Medeiros deixou na biografização de sua existência
indícios e pistas investigativas sobre o fazer docente na primeira metade do século XX. As
configurações da sociedade em que viveu estão presentes em seu trabalho professoral, em
sua poesia romântica e em suas cartas. É como se ela se autofigurasse ou se autorevelasses
nos fazeres do seu cotidiano. Seu autoretrato está configurado em documentos, imagens,
diários, cadernos, livros de matrícula, cartas que revelam práticas sociais e educativas de um
tempo histórico em transição. O estudo de suas representações revela os projetos de vida de
uma mulher para estudar, assumir a profissão docente, agir e interagir no mundo do trabalho
e na sociedade do conhecimento, lutando para ser dona de seu próprio destino, apesar de
órfã e paraplégica, conflitando com o paradigma ainda estável e dominante na primeira
metade do século XX, da mulher mãe e dona de casa.
Nesse sentido, a apropriação da vida de uma pessoa é feita pela escrita de sua
história, configurada em representações biográficas que assumem a forma de biografias,
autobiografias, diários, correspondências, memórias, constituindo-se em importante
documentação para a compreensão de uma época, de um grupo social, de uma história
pessoal. O curso de uma vida se desenvolve em um espaço-tempo no qual nasce a história
de vida, apropriada pelo seu figurante através da escrita histórica.
As investigações que trabalham com histórias de vida no campo educacional
privilegiam a pesquisa biográfica, valorizando os planos teórico e empírico, reunindo
materiais e observações, analisando documentos e materiais que contribuem para a
compreensão de processos biográficos e de biografização.
As fontes (auto) biográficas, constituídas por diários, autobiografias,
biografias, cartas, memoriais, entrevistas, narrativas, relatos, cadernos
escolares, entre tantas outras,tornaram-se há mais de trinta anos,objetos de
investigação dos mais pertinentes em educação. Elas têm permitido criar
novos territórios de indagação sobre a aprendizagem nos mais diversos
domínios e nas mais distintas modalidades (SOUZA; PASSEGI;
ABRAHÃO, 2008, p. 11).
Com fundamento nessa afirmação e para compreender a profissão docente, colocouse
em análise os registros, as representações biográficas figuradas pela Professora Marta
Bezerra de Medeiros na primeira metade do século XX. Sua história de vida foi analisada a
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partir dos enfoques profissional, privado e político-social, propondo-se a análise de
documentos pessoais, como correspondências, poemas, fotografias, diários, e profissionais,
como livros de matrícula, diários de classe, anotações, cadernos, apostilas, entre outros, em
articulação com o estudo bibliográfico do contexto histórico. Realizou-se a articulação entre
a história de vida professoral e sua época, ultrapassando os limites da narrativa pela
interpretação.
Pesquisas com histórias de vida no campo educacional evidenciam a
pessoa do professor ao ressaltar a relevância da subjetividade como um dos
conceitos articuladores dos questionamentos teóricos vigentes e das
propostas que realimentam o estudo do método. [...] Com a centralização
dos estudos e práticas de formação na pessoa do professor, busca-se
abordar a constituição do trabalho docente, levando-se em conta os
diferentes aspectos de sua história (pessoal, profissional e organizacional),
a partir da tomada de consciência, do reconhecimento das fontes e dos
dispositivos de construção/apropriação dos saberes da docência em
articulação com o fazer cotidiano do/no trabalho pedagógico (GOMES;
SOUZA, 2008, p. 127-128).
A pesquisa biográfica é uma pesquisa qualitativa. O estudo da história de formação e
profissional dos indivíduos implica em um trabalho de explicação e de análise, em que
percursos são interpretados considerando a interface entre o social e o pessoal.
[...] eles [os percursos] se inserem sempre em biografias que não são
redutíveis ao mecanismo exclusivo de coerções sociais exteriores nem a
uma instância puramente subjetiva e tiram, precisamente, a singularidade
deles de um jogo único de inter-relações entre modelos sociais e
experiências individuais, entre determinações sócio-históricas e história
pessoal (SOUZA; PASSEGI; ABRAHÃO, 2008, p. 11).
Com fundamento nessa explicação, a profissão docente foi discutida, considerando a
articulação entre a história privada da Professora Marta Bezerra de Medeiros, realizada a
partir do estudo de sua produção manuscrita cotidiana, da leitura desses documentos nas
entrelinhas, e as determinações sócio-históricas, em um processo de interação entre a vida e
a história, abrindo-se espaço também para o trabalho com fontes orais.
No estudo da história de vida da Professora, sua trajetória foi concebida para além de
uma existência individual, um caminho, uma linearidade, com um começo, um meio e um
fim, como se fora um percurso orientado, numa ordem cronológica imutável, irreversível.
Assim, foram estudados quadros de sua vida, muitas vezes descontínuos e contraditórios,
mas unidos por elos invisíveis, repletos de significado, que estabelecem conexões e
coerências entre acontecimentos pessoais, profissionais e político-sociais, permitindo a
compreensão de uma época e a configuração da superfície social, em que age o indivíduo.
Marta Bezerra de Medeiros e a profissão docente na primeira metade do século XX:
formação ou vocação?
Com o propósito de analisar a profissão docente, tomando a primeira metade do
século XX como contexto de referência, refletiu-se sobre momentos da história de vida da
Professora Marta Bezerra de Medeiros, definindo os papéis ocupados, assim como as
práticas culturais desenvolvidas em sua existência, colocando em discussão fatores que
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contribuíram para transformação, renovação e desvalorização da profissão professor
atualmente.
Nascida no início do século XX, na cidade de Jardim de Angicos /RN e exercido o
magistério a partir de 1932, Marta Bezerra de Medeiros foi protagonista das lutas pela
educação em seu Município, sendo nomeada professora municipal, numa época em que não
existiam escolas municipais nessa região. Os acontecimentos que foram marcantes em sua
vida estão representados em documentos biográficos, fotografias, adquirindo sentido a partir
de processos de apropriação da realidade. As palavras de Carvalho (2009, p. 6) apontam a
importância do trabalho da professora Marta Bezerra de Medeiros para sua época.
A professora Marta Bezerra de Medeiros foi artífice do seu tempo. Tendo
nascido mulher e se constituído professora na primeira metade do século
XX, tanto reproduziu como reinterpretou/recriou as características e
representações da mulher professora. Cabe então investigar as práticas
culturais/sociais vivenciadas/desenvolvidas por Marta, ao lado das
representações de sua prática docente em um contexto social local, em um
momento em que se construíam novos saberes sobre a docência, tendo em
vista a quebra de paradigmas sobre seu exercício.
Um esboço de sua biografia contribuirá para compreender melhor quem era Marta
Bezerra de Medeiros3
e situá-la em seu contexto histórico. Marta era filha do fazendeiro
Manoel Bezerra da Cunha, proprietário da fazenda Nova Olinda e das terras da milhã dos
Cunha, em Jardim de Angicos/RN, e Ana Hermina de Paiva Cunha (falecida após o
nascimento de Marta) proveniente das famílias mais antigas da cidade. Pela decisão do pai
em casar-se novamente, foi doada para adoção ao casal Manoel Lourenço e Maria Rosa
Bandeira de Melo. Aos seis meses de vida, Marta foi acometida de poliomielite, que a
deixou com sequelas no membro inferior esquerdo.
Nascida em pleno início do século XX, recebeu influência na vida pessoal e
profissional dos vários acontecimentos que marcaram o cenário sociopolítico e econômico
em que viveu, presenciou e/ou participou durante sua formação. No período de 1915 a 1954,
o país caracterizava-se por uma economia em transição, avançava para a industrialização,
mas ainda se percebiam formas de produção colonial e agrária (NAGLE, 2001),
principalmente no Nordeste, relações sociais de poder e ideias conservadoras, que
implicavam na continuidade das relações econômicas. O processo de urbanização industrial
fomentou o surgimento de grupos que lutavam pela construção de um novo país e o contato
com a cultura trabalhista europeia e dos Estados Unidos despertou a necessidade de
escolarização da população no intuito de preparar mão de obra qualificada para operar as
máquinas. Resta lembrar que a educação do país caminhava a passos lentos, distante do
desenvolvimento da sociedade, que já exigia para o processo de desenvolvimento do
capitalismo uma mão de obra qualificada, ou pelo menos, pessoas alfabetizadas para
operarem o trabalho nas fábricas. Segundo Carvalho (2009, p.8):
O contexto histórico brasileiro da primeira metade do século XX é
marcado por continuidades e transformações no plano político, econômico
e social, que apontam para novos comportamentos, para o surgimento de
conflitos internos, movimentos sociais, correntes de ideias, orientando para
a conservação ou reformulação da ordem social.
As ideias socialistas / anarquistas que já eram conhecidas e discutidas no Brasil nos
primórdios da República Velha foram trazidas pelos estudantes brasileiros que voltavam da
Europa e principalmente pelos novos imigrantes (que chegavam ao país com o objetivo de
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construírem uma vida melhor). Nesse contexto, são criadas escolas baseadas na pedagogia
das “escolas modernas” (que valorizavam a educação como ferramenta capaz de construir o
cidadão ativo na sociedade), com ideias que contribuíram para a insatisfação e desejo de
mudança durante esse período, cabendo à educação o papel de agente transformador ou pelo
menos de agente esclarecedor da população de seus direitos e deveres. Com as ideias da
escola renovada, a educação passou a ser compreendida como a ferramenta de ascensão
social do indivíduo que vivia a margem da sociedade. Esse foi um dos fatores responsáveis
pelas primeiras mudanças ocorridas no cenário educacional, pela veiculação de um ideário
educacional que proclamava a importância da escola como via de reconstrução da sociedade
brasileira, defendendo a necessidade de reorganização do ensino. Ghiraldelli (2006, p. 33)
observa como era a pedagogia no período:
A pedagogia ensinada até então, quase sem muita consciência, através da
observação do comportamento do professor e repetida posteriormente
pelos alunos ao se tornarem professores, era uma fusão da pedagogia
formalizada pelo alemão Friedrich Herbart (1776-1841) com a pedagogia
que vigorou no passado com a Companhia de Jesus, e que se mantinha
forte até então (através dos princípios do Ratio Studiorum).
Os princípios da escola tradicional começam a ser criticados, em função das
transformações sociais e políticas que estavam acontecendo. Não havendo mais espaço para
uma pedagogia influenciada por ideias religiosas e de tendência contemplativa, a pedagogia
tradicional começou a sofrer rejeição, pois a burguesia buscava uma escola voltada para a
realidade, que acompanhasse as transformações da sociedade em ascensão. Em 1920, os
intelectuais do país se rendem as ideias inovadoras do filósofo norte americano John Dewey
que traz para a educação brasileira as ideias do escolanovismo. O aluno é colocado no
centro do processo de ensino e aprendizagem.
As ideias veiculavam em alguns casos a liberdade e igualdade de direitos. Mas se de
um lado os movimentos pregavam a ascensão da população à educação, ao trabalho, à
participação, ao conhecimento da leitura e do cálculo, criando-se uma demanda por
educação, por outro lado, as indústrias necessitavam de mão de obra qualificada e barata,
necessidade surgida com o advento da industrialização, que exigia no mínimo a instrução da
leitura e do cálculo para participação ativa no mercado de trabalho, o que de certa forma
contribuiu para a escolarização da camada mais pobre da sociedade, que passou a ter direito
ao acesso as escolas. É essa necessidade do capitalismo industrial de “fornecer
conhecimentos a camadas cada vez mais numerosas, seja pelas exigências da própria
produção, seja pelas necessidades de consumo que essa produção acarreta” (ROMANELLI,
1978, p. 59), que vai contribuir para a exigência da formação de recursos humanos,
exercendo pressão no sistema educacional, sem, no entanto, apresentar uma proposta para
mudanças profundas na estrutura educacional. Em face disso, as modificações foram
superficiais, manifestando-se, no cenário brasileiro do período, uma defasagem entre
educação e desenvolvimento, ou seja, entre “os produtos acabados oferecidos pela escola” e
o que a indústria estava a exigir.
Esse é o período em que Marta está tomando suas lições iniciais, que são marcadas
predominantemente pela pedagogia tradicional, que exalta a memorização, a repetição, a
disciplina, o castigo. A menina Marta corresponde às exigências educacionais de sua época:
é disciplinada, responsável, inteligente, interiorizando o modelo professoral e pedagógico
que contribuirá para sua formação professoral. Essas características estão evidenciadas em
seu “boletim escolar” do Curso Complementar, datado de 1931, que apresenta suas notas e
louva sua disciplina e empenho nas atividades diárias.
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No cenário de formação inicial da Professora, que ocorreu entre os anos de 1929 a
1931, registra-se a falta de interesse pelo trabalho do professor, que não era contemplado
pelas reformas educacionais promovidas no período. Conforme Ribeiro (2006, p. 32):
[...] as verbas eram insuficientes para um atendimento a um tempo
quantitativo e qualitativo melhor. [...] o modelo político-econômico
(agrícola-comercial exportador), sendo contrário a redistribuição do lucro,
comprometia tais verbas destinadas ao atendimento popular. E para o
educador se colocava o dilema: atender menos e melhor, ou mais e pior.
Esses fatores geraram insegurança no exercício da profissão professor, pois a
abertura de um maior número de escolas traria para as salas de aula uma grande quantidade
de alunos, o que comprometeria a qualidade do ensino e da aprendizagem, se não
aumentasse/melhorasse também a quantidade/qualidade de educadores. Nesse cenário, o
“otimismo pedagógico” que orientava para a ressignificação do modelo pedagógico
tradicional conquista espaço entre educadores e estudiosos, visto que era a própria sociedade
quem pensava / reivindicava a qualidade no ensino, preparando os estudantes para o
mercado de trabalho. Assim a economia passou a influenciar as diretrizes da educação,
como desejo de mudar os antigos paradigmas educacionais, e também como forma de trazer
a educação para dentro da ideia de modernização em que o país se encontrava inserido.
De acordo com Nagle (2001), as transformações econômicas, políticas, culturais
pelas quais o Brasil passava nos anos de 1910 e 1920 teriam condicionado uma visão de
educação que concebia a escola como sendo a instituição responsável pela difusão da
cultura do progresso. A partir da década de 1910, alguns grupos passariam a buscar na
educação sua bandeira de luta como foi o caso do Nacionalismo.
O Nacionalismo começou a vigorar no Brasil durante a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Foi um movimento de respaldo no processo de industrialização do país,
começando a ser inserido diretamente no contexto escolar, nas disciplinas de moral e cívica
e na rotina escolar como por exemplo, no hasteamento da bandeira, na entoação dos hinos e
cantigas acerca dos símbolos nacionais, na história com ênfase ao sentimento patriótico.
Essas práticas tinham por objetivo despertar nas crianças e adolescentes o sentimento de
amor e respeito a pátria, clamando pela valorização do nacional, que de acordo com Nagle
(2001, p. 67), essa “pregação nacionalista centralizar-se-á na formação da consciência
nacional”, buscando desconstruir a ideia de que a mestiçagem cria um povo fraco,
contribuindo para a valorização do brasileiro nato. Preocupava-se em combater o
analfabetismo e disseminar a instrução popular, pois só assim o povo poderia ter o direito ao
voto respeitado e garantido (que deveria ser obrigatório e secreto), podendo participar
diretamente das decisões políticas, tirando das mãos das oligarquias o domínio das decisões
nacionais.
Quando Marta inicia sua vivência escolar como aluna, as pregações nacionalistas
manifestam-se no contexto nacional e local, refletindo-se nas atividades do cotidiano
escolar, nas atividades cívicas de culto aos símbolos nacionais, nos “ditados” e “cópias”,
realizados diariamente, incutindo pela repetição e memorização os valores sociais e
políticos da época. Essas ideias estão presentes em seus cadernos de atividades datados de
1931, e repetidas diversas vezes em caligrafia muscular, em que novo e velho se articulam,
configurando a tecitura do período
Com a República e as reivindicações dos movimentos sociais pela instrução pública
de qualidade para toda população brasileira, surge também o direito ao trabalho feminino, a
mulher agora através do magistério podia fazer parte da economia familiar. O surgimento
dos prédios escolares vai testemunhar o trabalho da mulher no magistério público, a mulher
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passa a sair de casa e dirigir-se aos prédios escolares, o que antes era visto como uma
distração, passa-tempo, uma função doméstica, contribui para introduzir a mulher no seio do
novo modelo urbano-industrial-capitalista em vigor, o que de certa forma contribuiu para a
feminização do magistério. Pois só a mulher
[...] por possuir características como a da pureza, ingenuidade e docilidade,
poderia educar a infância lhes instruindo sobre as primeiras noções do
bem. Como consequência disso, desse conceito de vocação da mulher para
o magistério, o afastamento dos homens da carreira docente somente
aumentou (GOMES; SOUZA, 2008. p. 4).
Esse fato serviu de “análise para o entendimento de como a mulher, formada e
formadora, carrega consigo a marca da sujeição a ordem social” (ESQUISANI; WERLE,
2010), compreendendo-se que esse pode ser um dos factores que contribuem para a crise da
profissão professor, que passou a ser encarada como semiprofissão, gerando insegurança e
descrença no exercício docente.
No âmbito das mudanças sociais e educacionais vai sendo construída a identidade
professoral da professora Marta Bezerra de Medeiros, que nascida em 1915, testemunha as
dificuldades de escolarização da população no final da Primeira República. É nesse
momento que mantém o primeiro contato com a escola, durante a infância, o que é
interessante observar pelo fato de que a identidade professoral é construída a partir dessa
etapa da vida em que se toma como modelo os primeiros mestres, seus comportamentos e
valores. Essas representações somam-se a outras ao longo das histórias de vida, refletindose
nas experiências cotidianas, ações, posturas profissionais e pessoais, configurando-se
como saberes construídos sobre a profissão.
É certo que se aprende o estilo de vida de ser professor, o que ocorre quando se
observa o comportamento dos primeiros professores, momentos importantes em que se
configura a representação da figura do professor no imaginário. Nesse sentido, a identidade
do professor é construída em um processo contínuo, iniciado antes da formação inicial,
prolongando-se ao longo da vida e atravessando múltiplos contextos, vivendo vários
dilemas, construindo conhecimento em vários domínios. Sobre esse fato, Esquisani; Werle
(2010, p. 106) contribuem para a indagação “sobre a marca que uma instituição é capaz de
produzir em um sujeito a ela vinculado, configurando trajetórias e moldando visões de
mundo com tamanha intensidade que é impossível separar, mesmo nas memórias
(subjetivas), o sujeito que narra da instituição narrada”. É um processo entrelaçado à vida
dos sujeitos um eterno moldar-se às características ligadas a educação.
Nesse sentido, Esteve (1999) ressalta que as mudanças sociais ocorridas nos últimos
anos também influenciaram a vida pessoal e profissional dos professores. Ou seja, construir
sua identidade de professor, onde os saberes das experiências são importantes, mas somente
estes não bastam, são insuficientes. A docência representa um desafio e exige
conhecimentos, competências e preparação específica para seu exercício.
Marta Bezerra de Medeiros estudou no Grupo Escolar Pedro II (ao estudar nos
Grupos Escolares o (a) jovem além do ensino de boa qualidade, também gozava do
reconhecimento/status social, passando a ser respeitado (a) pela sociedade. No caso das
moças, estas eram tidas como os melhores partidos para o casamento. De acordo com
Medeiros (2012a), os Grupos Escolares foram uma via de acesso das mulheres na vida
econômica e social do país, pois com o direito à educação, elas também conseguiram o
acesso ao mercado de trabalho) e na Escola Complementar4
(que preparava para o
magistério público primário. Durante esse período as cadeiras eram formadas por aulas de
“Leitura e Língua materna, Arithmética e Desenho Geométrico, Geografhia, História,
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Educação Cívica e exercícios”) de Lajes, em 1931, ano em que se formou. Sua conduta
disciplinada e esforçada nas atividades escolares, uma das melhores alunas, valeu-lhe um
prêmio, o livro “Vitória pela Cruz”. Seu caderno de Caligrafia, datado de 1931, traz as
marcas do nacionalismo presente nas escolas, influenciando as atividades de repetição e
redação.
É nesse período que Marta começa a moldar sua identidade e suas características de
professora, influenciada pela formação inicial e pelos primeiros anos na escola, modelando
seu estilo de vida, adequando à profissão, condicionando seus modos e hábitos pessoais à
docência (ESQUISANI; WERLE, 2010). Sua formação foi marcada pelo modelo positivista
de educação, pautado na memorização e repetição dos conteúdos.
[...] que ela chamava de "ponto” e que era sabatinada pelos docentes. Os
dois últimos anos do ensino eram denominados de complementar (o 5º e o
6º ano), estudando caligrafia, geometria, história do Brasil (fatos
históricos, datas, heróis e valores), educação moral e civismo, geografia do
Brasil e do mundo através de estudos do atlas geográfico, português,
matemática, ciências naturais (física, química e biologia) e o ensino da
calistênica para fortalecer o corpo e o espírito (MEDEIROS, 2012b, p. 3).
Sua vida profissional tem início em 1932, quando é nomeada para o cargo de
professora da Prefeitura Municipal de Lajes, na Escola de Nova Olinda, situada no distrito
de Pico Preto, com apenas 16 anos, onde ficou até 1945. De acordo com Nóvoa (1999), "a
identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser
e de estar na profissão". A jovem Marta continua a modelagem de sua identidade de
professora aos 16 anos envolta em dúvidas e conflitos pessoais (porque decide se tornar
professora para ter como se manter financeiramente, pois não alimentava a esperança de
arrumar um bom casamento e nem pretendia viver da bondade alheia para manutenção da
vida. Nesse período, o casamento era a instituição destinada ao crescimento da mulher,
sendo o magistério, outra forma de ascensão profissional) e políticos (porque é convidada a
ser professora em um tempo em que a educação era vista como um curral eleitoral "com o
objetivo de fabricar os eleitores" aptos a votarem nas indicações políticas dos coronéis
(MEDEIROS, 2012a, p. 131)).
É necessário lembrar a troca de favores que marcou as primeiras décadas da
República brasileira. O coronelismo predominante principalmente no Nordeste como regime
político e econômico dominava e manipulava os governos locais e estaduais. O pai de Marta
tinha ligações com a oligarquia local e estadual. A jovem Marta desenvolveu-se nesse clima
político, observando e conhecendo suas mudanças, interesses e poder.
Nesse contexto patriarcal e conservador, as jovens que não podiam aspirar a um bom
casamento pela ausência de um bom dote, aspiravam a ser professoras, como alternativa
para a mulher. O magistério feminino configurava-se como profissão em alta na época,
devido à associação da imagem da mulher à mãe, dona de casa, boa esposa e assim
biologicamente relacionada ao cuidado e ensino de crianças. A profissão docente, no
período de interesse pesquisado, também era compreendida como uma despesa menor para
os cofres públicos que não precisariam mais sustentar mulheres órfãs ou viúvas. Por outro
lado, vale lembrar, que nesse momento surgem profissões “mais privilegiadas” no mercado,
fazendo com que os homens abandonem o magistério.
Dessa forma, a profissão docente na primeira metade do século XX tornou-se
privilégio das mulheres, que foi aos poucos afastando os homens do ensino primário
(ALMEIDA JÚNIOR apud LOURO, 2008, p. 460), o que também atendia aos interesses do
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Estado, tendo em vista que era menos dispendioso ter mulheres na docência do que arcar
com maiores salários pagos aos homens.
Destarte, a professora Marta exercia a docência em um tempo em que o direito ao
conhecimento era restrito a poucos, as escolas isoladas do Rio Grande do Norte se
propunham a desenvolver uma educação voltada para o bem-estar pessoal e social, passando
a ideia que só com a extinção do analfabetismo seria construída uma sociedade justa e
igualitária. Daí refletindo sobre a influência que Marta exerceu na educação de seu tempo,
observa-se que ensinando nas Escolas Isoladas de Caiçara do Rio dos Ventos, Pedra Preta e
Lajes “às crianças, adolescentes e aos adultos ler, escrever, contar, somar, dividir, subtrair,
votar, ela procurava transmitir a necessidade dos estudos na busca de uma profissão-vocação
e de transformações nas vidas pessoais dos alunos” (MEDEIROS, 2012a. p.123),
orientando-os acerca da importância/necessidade da educação para o desenvolvimento do
homem cidadão responsável por sua vida e pelas mudanças que estavam ocorrendo no país.
Acreditava que a educação era o “momento central de toda formação humana” (CAMBI,
1999, p. 415).
Marta exercia a docência em uma Escola Isolada.
5
Segundo Medeiros (2012a, p.
123), “as Escolas Isoladas, no Brasil, foram herdadas do oitocentos, onde eram
multiseriadas, concomitantemente convivendo com a educação familiar e doméstica”. Nesse
modelo de escola os professores eram obrigados muitas vezes a utilizar sua residência como
local para a ministração das aulas, uma vez que não havia prédios apropriados, o salário era
baixo e ainda chegava a atrasar o pagamento. Além da falta de estrutura física existiam
outras carências que prejudicavam o ensino como a falta de bibliotecas, merenda, material
didático, contribuindo para a pouca procura e não conclusão dos estudos pelos alunos.
As professoras das Escolas Isoladas na primeira metade do século XX eram pessoas
alfabetizadas, formadas pelos Cursos Complementares. Muitas vezes, eram mulheres jovens
que buscavam na docência uma profissão respeitada, que pudesse contribuir para as
despesas pessoais e/ou do lar. Sua indicação podia partir de fins políticos, com o intuito de
alfabetizar o maior número de indivíduos aptos para votar nas eleições do novo regime.
Ora, nesse momento, não sendo obrigatória a prática do concurso público
para professor, as nomeações para esse cargo (como para tantos outros) se
faziam por indicação política, a partir de promessas de campanhas. Os
cargos estavam dispostos em um balcão de apostas, ganharia aqueles que
compreendessem melhor o jogo. Martha compreendeu. Sua família tinha
ligações e compromissos com o poder político local. Era filha de
fazendeiro e aliado político do Sr. Francisco Leandro da Costa chefe
político local. Sua mãe adotiva era amiga da primeira prefeita eleita de
Lajes e do Brasil, Dona Alzira Teixeira Soriano6
(CARVALHO, 2011, p.
8).
Foi o que aconteceu com Marta quando resolveu se tornar professora. Porque
naquele período, as moças resolviam ser docentes, porque era a profissão que lhes era
oferecida naquela estrutura social, além de possuírem o sentimento de pertencer a um grupo
naturalmente vencedor, para o contexto da época. Marta respondeu aos apelos de sua época
e se tornou professora primária, compondo o quadro de funcionários do Departamento de
Educação do Estado do Rio Grande do Norte, denominada de professora substituta da classe
F, conforme título de nomeação encontrado em seu arquivo pessoal.
Esse documento conta a história da educação da época, em que existia a categoria
provisória para definir determinada categoria de agentes educacionais. Essa categoria hoje
corresponde ao professor substituto, mas naquela época definia os professores que
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ocupavam a função no lugar de outro. Marta então passou a usufruir um status social
respeitado e que lhe trouxe grandes oportunidades. Passou a se vestir melhor, começou “a
andar na moda”, a comprar jóias, casas, livros e fez amizade com pessoas influentes da
sociedade e da política local e estadual. Sua paraplegia em nada dificultava suas relações
sociais pela razão de pertencer a uma família bem conceituada da região. É o que explica
Medeiros (2012b) em entrevista sobre a vida professoral de Marta Bezerra de Medeiros.
As relações sociais na primeira metade do século XX se processavam através de
influências, em que o contato com pessoas respeitadas na sociedade permitiam certo
reconhecimento e ascensão social. Uma amizade de fundamental importância na vida da
Professora Marta foi com Carolina Augusta da Silva Massa7
, que possuía mais de dois
cursos de segundo grau, era funcionária da rede ferroviária e considerada uma intelectual da
época, por isso gozava de influência social.
Essa senhora contribuiu para a nomeação de Marta como professora substituta da
Escola Isolada de Pedra Preta em 1945 e na nomeação, como dirigente da Escola Isolada de
Lajes; também presenteava a professora com livros. Foi a responsável pela sistematização
do seu saber. Sendo autodidata, Marta começou a aprender francês em casa por intermédio
de um livro dado por Carolina Augusta, também começou a fazer cursos de capacitação pela
Secretaria de Educação do Estado e a ter contato com a elite de professores do
Departamento de Educação do Estado, como o professor Francisco Rodrigues Alves, entre
outros (MEDEIROS, 2012b, p. 4). No arquivo documental de sua história de vida encontrase
uma grande quantidade de correspondências trocadas entre ela e Carolina Augusta que se
tornou amiga confidente durante o período turbulento da vida profissional da professora, em
que enfrentava as dificuldades da troca de favores políticos na profissão professor
(AUGUSTA, 1945).
Carolina orientava a professora Marta a como lidar com o jogo de favores existente
no serviço público. Esse jogo de interesses que não era baseado na competência,
conhecimento, dedicação, bom desempenho dos professores. A amizade com Carolina
trouxe para a jovem Marta maturidade e conhecimento científico que se somaram na vida
pessoal e profissional.
Outro grande amigo e tutor intelectual de Marta foi o Professor Francisco Rodrigues
Alves8
, Inspetor de Ensino da escola de Pedra Preta, do Estado do Rio Grande do Norte,
onde conheceu a professora Marta, tornou-se grande amigo, sendo quem resolvia os
assuntos burocráticos da escola. Costumava presenteá-la com livros, monografias,
influenciando-a a estudar português, literatura, conhecimentos acerca da cultura brasileira;
era também quem falava sobre as ideias dos Movimentos Sociais e correntes de
pensamentos que circulavam na época como o socialismo, anarquismo e nacionalismo. A
jovem Marta ouvia e assimilava essas novas ideias, mesmo com resistência, por ser uma
católica fervorosa. Sua amizade com Francisco Rodrigues proporcionou-lhe o acesso a
várias áreas de conhecimento, pois o professor a presenteava com livros diversos do próprio
Departamento de Educação. Ele também conseguiu junto ao Governo Federal, na época de
Dutra, a doação da cadeira de rodas que a Professora usava. Esses fatos estão relatados na
correspondência trocada com esse professor, disposta no arquivo pessoal da Professora
Marta Bezerra de Medeiros.
Outra amizade de destaque na vida de Marta foi com Maria Carmelita que doou o
terreno na Rua Manoel Câmara, nº 64, Lajes, em 1965, para que a professora construísse a
sede da Escola Isolada de Lages junto com a Escola de Datilografia e sua residência. Esse
fato pode ser compreendido como uma representação das relações entre o público e o
privado na história brasileira e que se estende às questões educacionais. A Escola Isolada de
Lajes funcionava durante a manhã com uma única turma composta pelo 1º ano A, o 1º B e o
2º ano, e em alguns casos, alunos que eram preparados para o 3º ano do grupo escolar Pedro
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II, em Lajes. A tarde funcionava a escola de datilografia e à noite, o curso de adultos que ela
criou com objetivo de minimizar o analfabetismo dos adultos nas cidades onde exerceu a
docência. Os cursos de datilografia, criação de flores, bordados foram pensados pela
Professora Marta com incentivo para a permanência dos adultos no curso noturno, bem
como uma fonte de renda para somar no orçamento mensal, já que o salário de professor era
baixo.
Observe-se que a prática pedagógica da Professora é permeada pelas relações sociais
que marcavam sua época. Ora, se o professor era mal remunerado, os professores podiam na
própria escola abrir cursos particulares para complementação do orçamento profissional.
Não havia disciplina legal que impedisse a articulação entre a coisa pública e a privada.
A característica de boa professora veiculou-se pela região e cidades vizinhas e todos
queriam ter aula com a professora da cadeira de rodas. Sua prática pedagógica consistia em
enxergar cada aluno como único, respeitando suas dificuldades e limitações de
aprendizagem, criando métodos de fácil assimilação e participação em sala de aula.
Preocupava-se em ensinar a ler, escrever, contar, soletrar, exigindo dos alunos uma boa
caligrafia e responsabilidade com as tarefas escolares. Sobre a caligrafia, seu filho deu o
seguinte depoimento:
O ensino da caligrafia era assim retumbante, nenhum menino deixava de
fazer a caligrafia, por que para ela uma letra perfeita era uma coisa
importantíssima na vida dela. Agora por que essa caligrafia tão boa?
Porque quando o menino estava no 4° ano ele iria para o grupo, como ele
iria para o grupo à tarde, esse melhor aluno voltava pra sala para copiar no
quadro os textos, o cabeçalho da aula, então essa criatura já era o monitor
dela, entendeu? Que ia ajudar no próximo semestre e isso aconteceu com
vários alunos que terminavam o 3º ano, que iam estudar no Grupo ou no
Instituto Pio X, e voltavam para fazer essa ajuda. (MEDEIROS, 2012c, p.
11).
A respeito da caligrafia muscular, Vidal (2007, p. 500) afirma que a proposta
associava a disciplinarização corporal do aluno a “um controle mais minucioso do tempo
individual”, o que “permitia compreender os novos desafios da escrita”. Assim, “À medida
que se aperfeiçoava o traço, reduzia-se paulatinamente seu tempo de execução” (VIDAL,
2007, p. 501).
Esse movimento de controle do corpo do/a aluno/a dava-se ao mesmo
tempo em que a escola mineira passava de classes isoladas para grupos
escolares, introduzindo o ensino seriado e especializando a docência.
Constituía-se, assim, uma nova cultura escolar, baseada no ensino cada vez
mais racionalizado, distinguindo, internamente, professores/as e alunos/as,
que passavam a ser distribuídos diferentemente pelas classes primárias. A
racionalização do espaço escolar era acompanhada por uma racionalização
corporal dos/as educandos/as (VIDAL, 2012, p. 1).
Essa racionalização do espaço e do corpo dos alunos está presente na prática
pedagógica de Marta que se preocupava com a precisão do traço da escrita das palavras. Sua
letra era quase um desenho (MEDEIROS, 2012c). Preparava desde cedo o alunado para
tornar-se seus monitores, auxiliando durante as aulas nas atividades que exigiam um maior
deslocamento pela sala. Pela necessidade imposta pela condição de paraplegia, ela
reinventava o método monitorial, podendo ter uma grande quantidade de alunos na sala,
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atendendo em um mesmo horário e na mesma turma, alunos das três séries iniciais, modelo
pedagógico em funcionamento nas escolas isoladas.
Realizava o planejamento de suas aulas sempre aos sábados e domingos. Aos
sábados ia para o Grupo Escolar fazer o planejamento com todas as professoras da zona
rural, do Estado. Seu planejamento se desdobrava até o domingo, onde ela cortava, colava,
desenhava, adaptava as atividades que seriam feitas no flanelógrafo. Aquele ensino de
gramática que ela não podia fazer no quadro ia para o flanelógrafo. Fora as aulas de
gramática também usava esse recurso nas atividades de matemática em um processo
relacional entre teoria e prática e na integração aluno-professor, pois incentivava seus alunos
a participarem na elaboração da aula:
Mandava os alunos irem pra rua buscar palito e dava aula de matemática
exatamente utilizando os palitos no quadro exemplo: 1+1 (palito) vinha um
aluno de lá e colocava 2 palitos; 2+1 (palitos) vinha o aluno botava 3
palitos e assim aprendiam os alunos do 1º, 2º e 3º anos. Essa tabuada era
feita nesse quadro e se fosse para multiplicar era a mesma coisa 2x1
(palitos) (MEDEIROS, 2012b, p. 8).
A formação de Marta alicerçou-se na prática da pedagogia tradicional positivista que
distanciava os alunos do contato com o professor. No entanto, em seu autodidatismo
conheceu as ideias do escolanovismo, utilizando-se, a partir de então das ideias pedagógicas
das duas escolas predominantes na primeira metade do século XX. Assim, obrigava a
memorização do “ponto”, mas também incentivava a participação dos alunos para a
elaboração das aulas. Fazia questão em receber os alunos um por um na porta da sala de
aula, realizando um atendimento individual na correção das tarefas. Pegava na mão do aluno
para ensinar a caligrafia correta. Ensinava as turmas da 1ª, 2ª e 3ª séries, além de preparar
para o Exame de Admissão para acesso dos alunos aos Grupos Escolares. Em seu arquivo
pessoal e profissional, encontram-se fotografias da época que revelam seu fazer profissional.
Sentada em sua cadeira de rodas, atendendo individualmente a cada aluno, ela representa o
sacerdócio da vocação, como diria Medeiros, em entrevista. (2012c).
Na mesma sala, dava aula a todas as turmas. Sua prática pedagógica fundamentavase
no modelo aplicacionista que aprendeu no Grupo Escolar Pedro II, que possuía um
“ensino simultâneo, a racionalização curricular, controle e distribuição ordenada dos
conteúdos e do tempo ( graduação dos programas e estabelecimento de horários), a
introdução de um sistema de avaliação” (SOUZA, 2004, p. 114), baseado na imitação de
modelos prontos, reproduzindo atividades de memorização com repetições perfeitas. Sua
metodologia de ensino primava pela repetição e assimilação dos assuntos, terminava
ensinando tudo a todos, fazendo assim, com que os alunos tivessem acesso aos conteúdos de
todas as séries.
Por anos sua escola foi procurada pela comunidade local e adjacências, talvez pelo
exercício de um modelo escolar que não impunha o castigo físico e de uma prática
pedagógica que, fundamentada no amor, valorizava a essência do fazer professoral,
compreendido naquela época como fazer missionário. Tal fato chegou ao conhecimento do
Presidente Marechal Dutra, que através do telegrama datado de 07 de agosto de 1948,
endereçado à Professora Marta, proveniente da Presidência da República, oferta-lhe uma
cadeira de rodas, pelo seu trabalho louvável e comprometido com a educação do país,
conforme publicação na Revista Pedagogium, datada de 1948, e telegrama da Presidência da
República, encontrado em seu arquivo:
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Marta Bezerra da Cunha, professora provisória, classe A, com exercício,
atualmente, numa escola isolada da cidade de Itaretama, é bem um
exemplo a ser apontado do elemento dedicado ao seu mister. Trabalhando,
a princípio, na vila de Pedra Preta, do mesmo município de Itaretama, a
contento de todos, num esforço profícuo, não mediu sacrifícios, apesar de
os bons fados não a favorecerem. Marta sofre de ataxia locomotora.
Conquanto, privada de locomover-se, por essa longa e pertinaz
enfermidade, apreciável tem sido a sua cooperação à nobre causa do
ensino.
Movida pela angústia do seu estado físico e confiante na generosidade dos
grandes corações, teve a feliz idéia de se dirigir ao Sr. Presidente da
República, relatando, de modo circunstanciado, numa carta simples, mas
cheia de sugestiva sinceridade, a situação aflitiva que a atormentava.
E não se fez esperar o gesto magnânimo do primeiro Magistrado da Nação,
concretizado, na oferta patriótica e humanitária, que acaba de fazer à
jovem professora da cidade de Itaretama, de uma Cadeira de Rodas, que
lhe viesse suavizar as agruras da contingência, que lhe impôs o Destino.
Como se vê, nem tudo está perdido, nesta terra de grandes possibilidades,
neste país do futuro, como se exprimiu Zweig... (GESTO, 1948, p. 41).
O texto da Revista Pedagogium revela e reforça a representação professoral da
época. O professor é aquele profissional que se sacrifica pela profissão, que não mede
esforços ou sacrifícios no exercício de sua missão. Marta é o modelo. Mulher, órfã, solteira
e paraplégica.
Dava aula para os filhos dos grandes proprietários de terras de Pedra Preta, exemplo
Borges Tupinambá que é grande fazendeiro no Rio Grande do Norte, sobrinho do
governador daquela época, João Valera. Mas também dava aula aos filhos das pessoas
pobres da cidade.
As atividades relativas às disciplinas de História Geral e do Brasil, noções de
História do Brasil, noções de História Geral, Ciências Naturais eram feitas através do
“ponto”. Ela aprendeu que quanto mais você decorava, mais aprendia. Então quanto mais o
aluno do 3º e 4º anos decorasse os textos e datas comemorativas de “ponta a ponta”, melhor
ele seria. O aluno tinha que escrever o que ela havia dito “em uma espécie de lembrar,
repetir, sem elaborar” (MEDEIROS, 2012a, p.12), o que para ela era o suficiente. Essa
memorização dos conteúdos estudados era apenas para a realização das provas, não
estimulava a criticidade do alunado, mas se ressalta que esse método de ensino estava dentro
dos parâmetros pedagógicos e curriculares do seu tempo e era utilizado por suas colegas das
escolas isoladas e do grupo escolar. Ela também fazia ditado para saber se o aluno aprendeu
a escrever, a colocar vírgula, ponto, acentuar bem, a fazer as regras da gramática, fazendo
uso dos aspectos da Pedagogia Tradicional.
Em seu percurso professoral, entrou em contato com novos materiais didáticos, os
carimbos, com figuras das letras do alfabeto e imagens dos principais representantes da
História Nacional (material constante em seu arquivo pessoal, verificada em abril de 2012).
Constatou-se que mesmo tendo sido educada no âmbito de uma pedagogia
tradicional na qual o professor era o centro do processo de ensino, e utilizando a
memorização dos conteúdos e a disciplinarização do aluno como pontos importantes de sua
prática, a Professora Marta abria espaço em seu fazer professoral para novas
ideias/metodologias/recursos que circulavam no contexto educacional, as ideias da escola
renovada que privilegiavam o aluno e a aprendizagem. Ao mesmo tempo em que as
colocava em prática também buscava melhorar seu trabalho, tomando como fundamento a
pedagogia explicitada no livro “Educação e Ensino” de João Henrique Pestalozzi (presente
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ganho do amigo e Inspetor de Ensino, professor Francisco Rodrigues Alves), que apresenta
a escola como local prazeroso para se estar. Ao mesmo tempo em que alfabetizava seus
alunos, também procurava construir a identidade de cidadão pronto para conviver em
sociedade, atendendo às necessidades do mercado de trabalho sem se esquecer dos seus
direitos e deveres sociais, para assim se tornar um ser completo, responsável por seus atos
em que o amor, o carinho e a atenção deixavam o ambiente escolar mais aconchegante para
aluno e professor. Assim, a professora Marta desenvolvia a pedagogia do amor, de
Pestalozzi (MEDEIROS, 2012b).
Por outro lado, era autoritária quando se tratava do cumprimento das atividades
escolares. O aluno tinha que cumprir, não podia deixar de fazer o dever e nem deixar de
fazer o ditado, todas as atividades eram obrigatórias/primordiais. Corrigia todas. O aluno
também tinha aula de educação moral e cívica. Às quintas-feiras ela reunia os alunos do
lado de fora do prédio, colocava-os enfileirados para o hasteamento da Bandeira e para
cantar o Hino Nacional. Exigia que o aluno soubesse o Hino da Independência, o Hino da
Bandeira, o Hino Nacional, o Hino da República e que conhecesse os símbolos da pátria,
sagrados para ela. Essas práticas cívicas presentes no trabalho da Professora Marta revelam
a influência da corrente Nacionalista veiculada nas primeiras décadas da República. Nas
palavras de Medeiros (2012b, p. 7): "e eu me lembro que ela batia palmas e eles entravam
tudo em fila, depois ela batia palmas e todo mundo sentava na cadeira, [...] pra ela começar
a trabalhar". E quando era mais ou menos 9h30min “todo mundo rezava o Pai Nosso, não
importava a religião, para agradecer a Deus a oportunidade de estar estudando”. Essas
práticas educativas fazem parte do seu cotidiano escolar durante o período pesquisado, ou
seja, até 1954. As vivências da formação inicial amalgam-se a sua extrema religiosidade,
aos saberes adquiridos na formação continuada (no caso, autoformação) e aos apelos do seu
tempo, influenciando e muitas vezes definindo o seu fazer pedagógico.
Ser professora na primeira metade do século XX significava exercer uma
pedagogia/prática pedagógica tradicional baseada na observação, repetição das atitudes do
professor, memorização dos conteúdos e punições, predominando o desconhecimento ou
impossibilidade de contato com a pedagogia escolanovista. Porém, mesmo inserida nesse
contexto, a professora Marta desenvolveu uma prática diferente da ensinada pelo curso
formador, considerando-se as relações sociais que mantinha e leituras que fazia. Retirava o
aluno da carteira e o trazia para dentro do processo de ensino-aprendizagem, colocando-o
perto do professor, realizando um estudo individualizado, aluno por aluno, em um momento
em que as salas de aula se encontravam lotadas, os alunos mal distribuídos, as salas
ocupadas por todas as séries ao mesmo tempo. Percebe-se no trabalho da Professora
resquícios do escolanovismo, que não foi vivenciado por ela durante a formação inicial, mas
que interiorizou a partir das leituras realizadas em processo de autoformação e recriação da
profissão.
Ao adotar uma postura docente não punitiva corporalmente e mais próxima do aluno,
a imagem de “monstro sagrado” do “professor carrasco/severo” que todos deveriam temer
era aos poucos desconstruída, surgindo uma identidade professoral em processo, em
construção. Exigente no cumprimento das tarefas escolares, apesar de contrária aos castigos
físicos, fazia uso dos castigos psicológicos, “O medo que ela colocava no menino era
imaginário, porque ela dizia que a criança que não se comportasse bem vinha um gato
elétrico e pegava o menino. Então todo mundo tinha medo do gato elétrico” (MEDEIROS,
2012b, p. 13). Inventou a figura do gato elétrico que puniria aquele aluno que desobedecesse
a professora, que não terminasse as atividades de classe e as de casa. Esse gato na verdade
nunca foi visto, mas era ouvido (a professora Marta possuía uma sineta elétrica que fazia um
barulho estranho, o qual era conhecido como o grito do gato elétrico) e temido por seus
alunos (sineta constante em seu arquivo professoral).
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Possuía moral indubitável, mas já apresentava as características de uma mulher à
frente do seu tempo. Observemos o que Carvalho (2009, p. 5) afirma sobre ela:
Ao contrário das professoras da época, Marta não se escondia no exercício
professoral. Usava roupas coloridas que deixavam transparecer sua beleza.
Usava maquiagem, delineava o olhar e seus cabelos estavam sempre bem
penteados, com fitas coloridas ou outros adereços. Sua postura, apesar de
autoritária, não impunha pavor aos alunos. Era o velho modelo professoral
sendo recriado/aprofundado pelo novo.
Percebe-se essas marcas ao estudar seus documentos, a atenção que dedicava a cada
aluno tratando todos com carinho e respeito, nunca usando a palmatória9
ou outro castigo
físico para obter o respeito ou cumprimento das atividades por parte dos educandos.
Vaidosa, sempre estava bem arrumada e com os cabelos penteados e ornamentados por laços
ou fitas; sempre perfumada, com os lábios pintados, sorridente, se tivesse jóias as colocava.
Suas fotografias revelam esses pormenores importantes para a leitura da identidade pessoal
e professoral de Marta Bezerra de Medeiros. Em seu arquivo pessoal, foi encontrado o
arranjo de flores que sempre ornamentava seus cabelos, presente em suas fotografias.
Possuía uma parte do seu vestuário destinado à sala de aula, pois dizia que a
professora não podia apresentar-se mal arrumada a seus alunos, ao contrário, deveria estar
física e emocionalmente bem resolvida para que os alunos sentissem segurança nos
conhecimentos ofertados por ela. Era alegre bem diferente da postura das professoras da
época, que pregavam rigidez, severidade e total falta de envolvimento emocional com
alunos. Constata-se isso através do testemunho de seu filho:
[...] Teve casos que a mãe do aluno, o matriculava diretamente no Grupo
Escolar, aí o menino chorava, ficava no grupo uma semana, duas e não
dava certo. Aí a mãe vinha falar com Mamãe.
– Marta, tu pegas esse menino só por uns dias, enquanto ele se acostuma?
Aí mamãe dizia, tá certo! Aí quando o menino subia no palanquezinho da
cadeira de rodas, que ela pegava na mão e dava um cheiro, que passava a
mão na cabeça, aí pronto, ali o menino já estava conquistado. Quando a
mãe vinha tirar o menino, o menino dizia. - Não vou! Aí pronto chorava e
tudo de novo. Aí o menino ficava na Escola Isolada. (MEDEIROS, 2012b,
p. 3).
Na Cidade de Caiçara, Rio Grande do Norte, a Professora Marta começou a dar aulas
para substituir sua irmã Ericina Bandeira Fernandes. Encontrou o prédio escolar deteriorado
com infra-estrutura precária, as paredes caindo. Como a escola se encontrava situada em
uma cidade do distrito de Lajes, a prefeitura alegava não possuir dinheiro para reforma.
Preocupada com a situação, Marta resolveu fazer um baile para arrecadar fundos destinados
à reforma da escola. Assim, conseguiu subir as paredes da escola, fazer o piso e construir
umas bancadas. Nesta Escola Isolada Marta desenvolveu uma metodologia de ensino
revolucionária para a época e a sociedade interiorana, começou a produzir peças teatrais,
influenciando as moças da comunidade a participarem, fato que provocou questionamento
na cidade sobre sua prática,
[...] porque quando estas moças começaram a fazer parte dos dramas,
começaram a sair de casa e ir para o drama, aí as famílias mais interioranas
né [não é], diziam, um dia nasce uma criança naquele grupo. Porque uma
professora dessa toda pintada, toda arrumada, ministrando aula, as
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meninas agora é tudo pintada, é tudo de batom que é pra imitar a
professora (MEDEIROS, 2012c, p. 6).
Observa-se o impacto das posturas e prática da Professora no cenário conservador e
tradicional das cidades da região central do Estado do Rio Grande do Norte. Marta era
ousada, desafiava a sociedade de sua época, mas compreendia, também, que se não fosse
pela sua família, relacionamentos políticos e trabalho que realizava na escola, as práticas
desafiadoras teriam vida curta. Assim, ela reinventava o velho modelo professoral e
expandia a profissão docente.
Nos horários intermediários ensinava a bordar, pintar, costurar. Então as meninas que
frequentavam a escola de manhã, à tarde também iam para os cursos. Pois “como ela dizia,
o Estado não pagava bem, então ela tinha os cursos auxiliares pra ajudar a melhorar o
salário e viver uma vida melhor” (MEDEIROS, 2012b, 12). Marta desenvolveu uma
amizade forte com dois alunos da Escola Isolada de Caiçara, Valter e Geraldo que eram
filhos de Márcio (que tinha propriedades na cidade).
[...] quando a mulher de Márcio está morrendo manda chamar Marta,
pedindo que tomasse conta da educação dos seus dois filhos que sonhavam
estudar na cidade de Bananeiras, localizada no Estado da Paraíba, ficando
Márcio responsável pela parte financeira. Isso deu um problema enorme
porque ela não só tomou conta dos meninos como começou a namorar
Márcio. Então a professora era uma professora que namorava que recebia
o namorado em casa. E as pessoas olhavam assim, “como é que pode a
professora está recebendo o namorado que é viúvo”. Mas ela achava aquilo
tudo muito natural, porque ela o recebia porque gostava dele, era louca e
alucinada por ele. E os meninos foram morar na casa dela em Lajes para
passar três anos estudando para se prepararem para Bananeiras. Ela
preparou os meninos para as provas de Bananeiras. E quando terminou
esse percurso, terminou o namoro (MEDEIROS, 2012b, p. 15).
Compreende-se nesse episódio o que representava para Marta ser professora. Ela
acompanhava a criança em sua formação, além de suas possibilidades. É o que percebemos
no depoimento de Medeiros (2012b, p. 15):
Mamãe achava que ser professor era sacerdócio. Então ser professor para
ela, era o aluno chegar cego e sair vendo tudo! Ver tudo para ela era ler,
escrever corretamente, fazer uma interpretação razoável e ter as operações
fundamentais todas na mente, isso era suficiente. Ela dizia “eu sou uma
boa professora não tem um menino que não aprenda a ler comigo, ele pode
ter batido todas as escolas do mundo, mas, comigo ele vai aprender a ler”.
A visão de magistério da Professora Marta Bezerra de Medeiros ia além da aquisição
da qualificação profissional e/ou a certificação para o exercício profissional. A
formação/profissionalização percorre outros caminhos que não são garantidos somente pelo
processo formativo.
[...] achava que ser professor era uma profissão que não era para todo
mundo. Só aquelas pessoas que tinham dentro de si a vocação, a dedicação
e que realmente gostavam de ser professor. Então quem quisesse ser
professor só pra ganhar aquele dinheiro, não vá, você só pode ser
professor se você compreender que o aluno chega sem saber nada e você
vai mudar esse aluno, que é trazer valor para a questão do entendimento da
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vida e [também] para o aluno aprender a votar, cidadania, só que essa
cidadania pra ela é muito ligada à obediência ao Estado. (MEDEIROS,
2012b, 16).
Era extremamente respeitada e elogiada na cidade, chamada para todas as festas,
possuía influência no Estado, na Universidade por seu jeito autêntico de ser, comprometida
com as causas sociais, fato que fez com que ela começasse uma luta em prol das pessoas
paraplégicas da cidade, escrevendo cartas ao Ministério da Saúde, reivindicando cadeiras de
rodas. Fazia esse trabalho comunitário, mas também cobrava, sendo que o pagamento era
feito com ovos, galinhas. Pintava sem nunca ter frequentado uma aula de pintura. Suas
pinturas, autoretrato encontram-se em seus cadernos pessoais. Pelo visto, ser boa professora
naquele momento histórico trazia prestígio e vantagens sociais, mas não dinheiro. O fazer
professoral continuava mal remunerado e esquecido.
Compunha poemas para externar suas emoções. Como exemplo, encontram-se os
poemas escritos por ela que homenageavam sua mãe legítima, Ana Hermina de Paiva
Cunha. O soneto intitulado "Órfão" fala sobre a dor de nunca a ter conhecido. "No
sepulcro", escrito para seu pai adotivo, o senhor Manoel Lourenço, e o poema de amor
escrito para seu marido, Luiz Medeiros Bezerra.
Ela mostrou que professora também podia casar, rompendo com o paradigma que os
(as) professores (as) eram seres assexuados. Essa compreensão muitas vezes condenava à
solidão as mulheres professoras daquele período histórico. Casou no dia dezenove de
setembro de mil novecentos e cinqüenta e dois (19/09/1952) aos trinta e sete (37) anos de
idade com Luiz Medeiros Bezerra, seu ex-aluno, muito mais jovem que ela, com apenas 18
anos, dados observados em sua Certidão de Casamento, contrariando todos os paradigmas.
Ser professor/a, nessa época, era sinônimo de boa conduta e de boas relações no
contexto político-social. Significava ser condizente com as normas estabelecidas. A
detenção do saber a ser transmitido e a docilidade da mulher que se assumia professora
caracterizaram a profissão docente no período; o discurso maternal/sacerdotal permeou o
magistério. O descaso político e a desvalorização docente se faziam presentes na ausência
de políticas públicas que valorizassem a profissão, nos baixos salários pagos aos professores
e na escassez de materiais. Por essas questões, o professor já buscava outras alternativas
para complementar as despesas, fato que se reflete atualmente.
O contexto histórico e a educação das primeiras décadas do século XX, que tanto
foram pano de fundo como influenciaram a vida pessoal e profissional da professora Marta
Bezerra de Medeiros, foram caracterizados/delineados pelas transformações sociais,
políticas, econômicas e culturais ocorridas nesse período, dentre as quais destacam-se: o
acelerado processo de industrialização e de urbanização; uma legislação educacional
fragilizada, uma sociedade em desenvolvimento e uma educação que tentava preparar as
pessoas para essa sociedade que emergia. Observando esse contexto e o atual, percebem-se
as transformações que ocorreram em vários campos da sociedade, implicando em que a
profissão docente abandonasse as características positivistas de mera transmissora de
conhecimentos “centralista, selecionadora, individualista” (IMBERNÓN, 2002, p. 7).
Analisando o processo de formação docente do período em que viveu e foi educada a
professora Marta Bezerra de Medeiros, verifica-se os valores trabalhados pelos Grupos
Escolares que:
[...] reportava a uma clara concepção de ensino; educar pressupunha um
compromisso com a formação integral da criança que ia muito além da
simples transmissão de conhecimentos úteis dados pela instrução e
implicava essencialmente a formação do caráter mediante a aprendizagem
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da disciplina social – obediência, asseio, ordem, pontualidade, amor ao
trabalho, honestidade, respeito às autoridades, virtudes morais e valores
cívico-patrióticos necessários à formação do espírito de nacionalidade
(SOUZA, 2004, p. 127).
Percebe-se que o ensino não guarda as características do período em discussão. Hoje
os professores “devem ensinar, por exemplo, a complexidade de ser cidadão e as diversas
instâncias em que se materializa: democrática, social, solidária, igualitária, intelectual e
ambiental” (IMBERNÓN. 2002. p. 8). Essa nova educação deve ser promovida em conjunto
com outras instituições formadoras do caráter do ser humano (indivíduos / sujeitos), e
tomando a família como exemplo, compreende-se que com a saída da mulher para o
mercado de trabalho, a escola viu-se obrigada a assumir a atividade de educadora total. A
evolução da sociedade e os vários modelos familiares existentes provocaram uma
transformação na maneira de pensar, sentir e agir das novas gerações, fazendo com que o
professor seja obrigado a dominar métodos diversificados para alunos heterogêneos,
gerando carências na maneira de ensinar e agir do docente.
Essa problemática ocasiona um ceticismo em relação à educação, pois a sociedade
não acredita mais que esta pode ser melhorada ou pode melhorar o futuro. Os professores se
sentem perdidos frente ao novo cenário da educação e as reações perante este desajuste
configuram-se como o “mal-estar docente”, que vem sendo discutido por teóricos da
atualidade como Nóvoa (1999), Veiga, Araújo, Kapuziniak (2005), Tardif, Lessard (2005),
podendo ocasionar uma crise de identidade nos professores.
Nesse sentido, resta reinventar a profissão docente, assim como a professora Marta
“reinventou” sua atuação professoral a partir de suas condições físicas, dos princípios da
“Escola Nova” e das condições históricas da época. Uma das formas de se fazer tal
empreitada é começando por compreender como a formação docente foi se constituindo na
vida do professor e em seu tempo histórico.
Considerações Finais
A perspectiva de compreensão da profissão docente na primeira metade do século
XX, a partir da história de vida de uma professora, proporcionou outro olhar para a
docência, tendo em vista o conhecimento de fatores relevantes sobre o desenvolvimento da
profissão, o tornar-se professora, a prática professoral.
Percebeu-se, a partir da história de vida professoral de Marta Bezerra de Medeiros,
algumas características da profissão docente na primeira metade do século XX. A
configuração do ser professora não ocorre de forma isolada do contexto ou de forma
particular do indivíduo com ele mesmo; são as experiências vividas nesse contexto, as
leituras de mundo e as interpretações feitas em face da realidade que constroem/formam
professores. No caso da professora Marta, foram as dificuldades pessoais e profissionais, as
demandas do seu tempo que contribuíram para que se constituísse professora, em um
momento em que a mulher era estigmatizada como sexo frágil, as promoções, os cargos não
eram adquiridos por mérito, mas por apadrinhamento. Sua história de vida sugere por um
lado interpretações que a caracterizam como uma mulher a frente do seu tempo, mas por
outro, apontam sua co-responsabilidade na crise da profissão professor atualmente.
O contexto maior, na medida em que configurou a história de vida da professora
Marta, delineou, também, a profissão docente de sua época, modelando o exercício
professoral da professora, sua metodologia, ideias, mas também recebendo o impacto de
uma prática que se ressignificava e influenciava a sociedade ainda patriarcal e conservadora
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dos primeiros tempos da República. Percebe-se pela vida profissional da Professora Marta
alguns detalhes, vestígios que ainda se manifestam e influenciam a profissão professor
atualmente e que provocam o estresse docente, o desinteresse pela profissão, o abandono,
como o desinteresse político pelo profissional professor, o estresse do cargo, que exige que o
docente ocupe outras funções além da professoral, a luta pela sobrevivência do professor,
devido aos baixos salários. Esses fatores, já presentes na história professoral de Marta,
explodem nos dias atuais, causando o mal-estar na profissão, contribuindo para a
desvalorização da profissão professor.
Nesse estudo, considerou-se o pressuposto de que uma realidade particular quando
metodologicamente abordada contribui para a análise de realidades coletivas, ou seja, todo o
estudo biográfico deve se constituir em uma contribuição para o conhecimento de uma
época, ou de fases importantes da vida nacional e seus reflexos. Pesquisas que se utilizam da
abordagem biográfica e envolvem o diálogo com fontes escritas, orais e iconográficas
assemelham-se a territórios desconhecidos ou ainda não visitados, que a cada olhar permite
novos/outros significados. Esta seria sua função primeira, evidenciar contextos macros
partindo de conjecturas particulares representadas pela e na história de vida de um
indivíduo.
A história de vida professoral de Marta Bezerra de Medeiros revelou que na época
estudada, as relações sociais eram motivadas por interesses políticos e os cargos públicos,
como por exemplo, o de professor, eram conseguidos pela troca de favores, tipo de política
desenvolvido principalmente na Primeira República e que se repercutiu nos períodos
subsequentes. A formação docente para os professores das escolas isoladas e zona rural era a
mínima possível, não tendo na verdade nenhum valor, pois quem decidia o ser professor não
era o título, mas as relações sociais, políticas do candidato a docente. Essa “política
educacional”, se assim pode ser chamada, determinada pelas relações de poder (seria
professor quem pertencesse a uma elite política), desfavorece o trabalho docente e os
saberes da profissão.
Por fim, ressalta-se a contribuição da pesquisa biográfica para a compreensão de
fatos educacionais e para a história da educação, na medida em que permitiu reflexões
acerca do exercício e da imagem da docência.
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